Como se constrói o sabor

Doce, ácido, salgado, frutado, aveludado, suave, forte… Estes adjetivos que usamos para definir a comida não são construídos apenas pelo paladar. A cor, a forma, a textura, o aroma e até o barulho dos alimentos influenciam a maneira como percecionamos o sabor. Sabia que uma mousse de morango fica mais doce servida num prato branco do que num preto? Bem-vindo ao mundo da neurogastronomia.

O herborista italiano Marco Valussi, que se dedica também ao ensino na área da neurogastronomia, faz uma experiência muito simples com os seus alunos: põe-lhes duas bebidas à frente, uma branca e outra vermelha, e pede-lhes que descrevam o sabor de cada uma. Os resultados variam pouco: a bebida vermelha é considerada de sabor mais intenso e com um gosto a frutas tropicais, a bebida branca, com um sabor mais delicado, é associada a maçãs verdes. As bebidas são, no entanto, iguais. A vermelha leva apenas umas gotas de corante encarnado sem sabor. O gosto é o mesmo, mas como os olhos veem coisas diferentes infuenciam o palato, levando-o a sentir sabores diferentes.

Não é à toa que a sabedoria popular diz que «os olhos também comem». A ciência acrescenta que o nariz, os ouvidos e o tato também. Comer não tem apenas que ver com o gosto e com as papilas gustativas, é uma experiência multissensorial na qual nenhum dos sentidos fica de fora. Usado pela primeira vez num artigo da revista Nature Insight, em 2006, pelo neurobiólogo de Yale Gordon Shepherd, o termo neurogastronomia reflete precisamente isso: a forma como todos os sentidos e o cérebro reagem à comida.

Shepherd veio, de resto, a publicar, em 2011, o primeiro livro sobre o tema, Neurogastronomy – How the Brain Creates Flavor and Why It Matters [sem edição portuguesa], no qual percorre o papel que os outros sentidos têm na nossa perceção do sabor, com especial destaque para o olfato, que, defendem hoje vários investigadores, é de onde vem 80 a 95 por cento da nossa perceção de sabor, por uma razão muito simples: enquanto o paladar humano apenas destrinça cinco sabores – amargo, doce, azedo, salgado e umani (gosto presente nos alimentos que têm glutamatos e nucleotídeos) –, o nariz distingue milhões. Feche os olhos, tape o nariz e deixe que lhe coloquem na boca um pedaço de um alimento desconhecido e perceberá exatamente do que falamos.

Além do olfato ortonasal, que deteta os odores do ambiente fora do corpo, há outro, que se chama retronasal, funciona por via oral e deteta os cheiros do que está dentro da boca. Tanto um como outro condicionam em muito a construção do sabor. Da mesma forma, os estudos têm mostrado que o tato (que sente se a textura é macia, crocante, gelatinosa, etc.) também tem uma palavra a dizer na formação do sabor.

Há até quem vá mais longe e estude elementos que condicionam o sabor da comida, estando para lá dela. Charles Spence, professor de Psicologia Experimental e director do Crossmodal Research Laboratory da Universidade de Oxford (Reino Unido), trabalha na área da perceção multissensorial, incluindo a perceção sensorial dos alimentos, mas estende a sua investigação aos fatores não alimentares que moldam a perceção da comida, por exemplo, elementos cognitivos e de ambiente. No seu livro The Perfect Meal – The Multisensory Science of Food and Dining (Wiley-Blackwell, 2014 – sem edição portuguesa), o autor reflete sobre como fatores como as loiças usadas para servir a refeição, o nome usado para descrever o prato ou a música ambiente do restaurante também ajudam a construir a experiência de refeição que se tem e, de certa forma, o sabor.

A neurogastronomia, que foi considerada uma das tendências mais em voga em 2015, tende cada vez mais a tornar-se a norma, com os bons restaurantes a estudar e a preparar intencionalmente tudo para que se tenha uma experiência o mais positiva possível. Por isso, da próxima vez que jantar fora repare em tudo, no prato e à sua volta.
O PODER DOS SENTIDOS
» Uma mousse de morango fica dez por cento mais doce num prato branco do que num preto. » E fica mais doce ainda se o prato for redondo.
» Usar loiças e talheres pesados melhora significativamente a perceção dos sabores.
» O som do piano faz a comida parecer mais doce.
» O café com leite fica mais forte se for servido numa caneca branca (mesmo branca e não apenas uma cor clara).
» A frequência sonora que as batatas fritas produzem ao ser mastigadas determina a sensação de frescura e o prazer que se tem a comê-las.

MAGOS DA COZINHA MULTISSENSORIAL

HESTON BLUMENTHAL, o icónico chef do Fat Duck, em Brey, Berkshire, no Reino Unido (restaurante que chegou a ter três estrelas Michelin), é famoso pelas suas criações. A mais famosa, que criou com Charles Spence, é o prato sound of the sea, que recria o oceano – incluindo moluscos, mas também «areia» e «espuma do mar» comestíveis – e que é acompanhado de um iPod através do qual quem degusta o prato pode ouvir pelos auscultadores o som das gaivotas e das ondas.

GRANT ACHATZ não conhece limites. «Pirotecnia» culinária, luzes que alteram o humor, menus pensados para evocar memórias de infância, pratos idênticos às pinturas de Jackson Pollock, que são preparados na mesa… Quem quiser conhecer o trabalho que este mago das sensações desenvolve no famoso restaurante Alínea, em Chicago, pode agora dar um pulo a Madrid, onde vai estar de 12 de janeiro a 6 de fevereiro. Sim, porque com Achatz nem os restaurantes têm poiso fixo.

MIGUEL SANCHEZ ROMERA, neurologista e chef, foi um dos primeiros a explorar o conceito no seu restaurante Romera, em Nova Iorque (que entretanto fechou). Os pratos eram montados pelo próprio, com o objetivo de interagir de forma muito especial com o cérebro, praticando a chamada culinária sensorial, que pretende despertar emoções e mudar perceções através dos alimentos. Hoje trabalha entre Nova Iorque, Shandong (China) e Barcelona.