Clint Eastwood, o último dos duros

Já está nas salas portuguesas o mais recente filme de Clint Eastwood, Milagre no Rio Hudson. Outra história americana e com base real, como gosta o realizador. Um homem que preza, sobretudo, a individualidade e nunca se furtou a polémicas – a mais recente surgiu depois de uma entrevista em que parecia estar próximo de algumas ideias do candidato Donald Trump. Usando a linguagem cinematográfica, pelos flashbacks vamos dar ao close up, mais fascinante ainda se pensarmos na longevidade do protagonista. Destes, já não há mais.

Dos últimos doze filmes que dirigiu, num total que já perfaz 35 longas-metragens, Clint Eastwood só deu a cara (como ator, entenda-se) em dois. Precisamente aqueles em que o seu rosto – que cada vez mais parece talhado a canivete, anguloso, duro e determinado como algumas faces do realismo socialista, mais adequado a um sobrevivente das invernias do interior ou do Norte dos Estados Unidos do que a um nativo da soalheira Califórnia (ele nasceu em São Francisco, a 31 de maio de 1930) – não podia faltar: Million Dollar BabySonhos Vencidos e Gran Torino. No primeiro, que valeu Óscares de representação a Hillary Swank e a Morgan Freeman, cabendo ao próprio Eastwood o de realização, além do prémio reservado ao melhor filme, ele é Frankie Dunn, um treinador de boxe que, passados os anos de glória, volta a entusiasmar-se com uma mocita tão franzina como teimosa, que não olha a sacrifícios para chegar ao topo. No segundo encarna Walt Kowalski, um empedernido veterano de guerra que, em nome de princípios e de valores, acaba por transformar-se num defensor, ou protetor, dos seus vizinhos asiáticos, pelos quais não esconde, inicialmente, algum desprezo, para não irmos mais longe. A evolução narrativa de Gran Torino serve, de resto, ao cineasta para sublinhar o sentimento e a atitude que mais afirma detestar: a ideia e a prática do racismo.

Fica bem expresso, neste progressivo afastamento da função de representar, um dos paralelos de Eastwood com outro octogenário hiperativo do melhor cinema norte-americano, Woody Allen. Mas o que pode unir um judeu nova-iorquino e liberal a um californiano que, em sucessivas ocasiões, se identificou com o ideário republicano, chegando a apoiar publicamente Eisenhower, Nixon (duas vezes), Reagan e o derrotado John McCain (adversário de Obama)? É preciso manter esta aproximação a um nível estritamente profissional, se descontarmos uma caraterística comum de não-alinhados com os modos e as modas da indústria que provoca em ambos uma evidente desconfiança e, até, algumas críticas diretas. Eastwood e Allen, um com um filme agora estreado em Portugal, o outro com «notícias frescas» agendadas para 20 de outubro (data em que chegará Café Society), parecem ter chegado a uma fase em que, reconhecendo as limitações associadas à idade, decidiram interromper aquele saltitar constante entre realizar e representar, optando pela circunscrição ao papel de regentes. O que não os impede de uma ou outra aventura diante das câmaras: Eastwood encabeçou o elenco de As Voltas da Vida, filme de Robert Lorenz em torno do baseball, juntando-se a Amy Adams, John Goodman e Justin Timberlake; Allen deu a mão a John Turturro, realizador – e ator – de Quase Gigolo, com um cartaz feminino de sonho(s), a reunir Sharon Stone, Sofia Vergara e Vanessa Paradis. Mas, insiste-se, ambos parecem agora focados na realização.

Tanto Eastwood como Allen prosseguem uma busca sistemática por novas colaborações, variando enormemente os elencos que dirigem. Allen recorre às suas musas – Louise Lasser, Diane Keaton, Mia Farrow e, mais recentemente, Scarlett Johansson e Emma Stone –, mas já dirigiu meio mundo. Além disso, quando não participa em carne e osso atribui inúmeras vezes ao ator principal masculino, seja Edward Norton, Kenneth Branagh, Larry David, Jason Biggs, Owen Wilson ou Steve Carell uma figura… à Woody Allen. Eastwood não partilha isso. É verdade que convocou várias vezes para o seu naipe de atores Sondra Locke, com quem, à época, partilhava casa e cama. Repetiu alguns nomes em papeís secundários, como Verna Bloom, Sam Bottoms, Pat Hingle, Diane Venora e Marcia Gay Harden. Mas o caso de Laura Linney, com quem rodou três filmes, é uma exceção. De resto, só depois de Bird – O Fim do Sonho, uma tangente à biografia do saxofonista Charlie Parker, é que Clint começou a ter direito aos ases de trunfo, se excetuarmos uma experiência com William Holden, na década de 1970. Quando começou, não parou mais: Forest Whitaker, Raul Julia, Richard Harris, Kevin Costner, Laura Dern, Meryl Streep, Ed Harris, Scott Glenn, Judy Davis, John Cusack, Kevin Spacey, Jude Law, James Woods, Tommy Lee Jones, Donald Sutherland, James Garner, Jeff Daniels, Anjelica Huston, Sean Penn, Tim Robbins, Kevin Bacon, Laurence Fishburne, Hillary Swank, Ryan Philippe, Angelina Jolie, John Malkovich, Leonardo Di Caprio, Naomi Watts, Judi Dench, Christopher Walken, Bradley Cooper e, agora, Tom Hanks, já todos lhe passaram pelas mãos. Gene Hackman e Matt Damon, duas vezes cada um. E, à frente da lista, Morgan Freeman, o seu fiel escudeiro em Imperdoável e Million Dollar Baby, o inesquecível Nelson Mandela de Invictus.

Para os adeptos da história e da estatística, convirá acrescentar que, só no setor reservado aos atores, os filmes de Eastwood já renderam quinze nomeações para os Globos de Ouro, incluindo quatro triunfos.

Quanto aos Óscares, são treze as nomeações e cinco as estatuetas recolhidas por cinco atores: Gene Hackman (Imperdoável), Sean Penn, Tim Robbins (ambos em Mystic River), Hillary Swank e Morgan Freeman (Million Dollar Baby). Claro que ainda hoje andamos à procura de resposta à altura para o facto de Meryl Streep (As Pontes de Madison County) e de Angelina Jolie (A Troca) terem acabado preteridas. Mas, como se sabe, os Óscares não são uma ciência exata. Nem justa, tantas vezes.

Com o passar dos anos, Eastwood teimou em surpreender. O homem que ganhou notoriedade numa trilogia de westerns que trocou as planícies americanas pelos cenários naturais da Andaluzia e dos arredores de Madrid, a que se juntaram os estúdios da Cinecittà, em Roma, cresceu à medida da sua altura (1,93 metros) para escapar sempre às enxurradas da moda e assinar os seus filmes contra as marés dominantes. Tinham passado quase vinte anos sobre o lançamento de O Bom, o Mau e o Vilão, capítulo final da trindade aberta com Por Um Punhado de Dólares e prosseguida com Por mais Uns Dólares – em que Eastwood deixou escapar um raro sinal de misticismo ou superstição, quando se recusou a lavar o poncho que o aconchegou nas três rodagens –, quando decidiu rasgar a certidão de óbito que os entendidos tinham selado sobre o defunto western, arriscando um espantoso Justiceiro Solitário, capaz de ressuscitar o pistoleiro de passado atribulado, com um pessoalíssimo sentido de justiça e invariavelmente implacável na respetiva aplicação, à lei da bala, sempre que necessário.

Teimoso como só ele, roçaria a perfeição do género, de novo, em 1992, com um clássico imediato chamado Imperdoável. Aliás, por mais voltas que se ensaiem, são evidentes os elementos de western que se espalham – com mais respeito pelos acontecimentos do que pela interpretação restritiva das cronologias – por Um Mundo Perfeito (filme subvalorizado, com Kevin Costner num dos seus melhores momentos), por Mystic River, por Gran Torino: os ajustes de contas, as figurações da lealdade, as perseguições, a definição de linhas entre fortes e fracos (mais do que entre «bons» e «maus»), as múltiplas dimensões das personagens, a sistemática procura por lugares de respiração, as reticências contínuas face ao que alguns consideram «o progresso». As mentes mais abertas ainda poderão incluir aqui o divertido Space Cowboys, em que Eastwood se junta a uma impagável pandilha formada por Tommy Lee Jones, Donald Sutherland e James Garner que, mais do que astronautas da Terceira Idade, são autênticos cowboys do espaço (como o título indica), mais dados à aventura e às transgressões do que às regras e à disciplina mecânica e automática. Mas que, ainda assim, nunca perdem de vista o sentido de missão.

Clint Eastwood tem uma base filosófica ou estética para este apreço denunciado pelo western. «Quem quiser acabar com o western deve ter consciência de que está a matar uma das poucas manifestações genuínas da cultura americana», diz ele. «Muitos dos nossos filmes, por muito bons que sejam, e alguns são, refletem uma enorme influência europeia. Já o western é incontestavelmente nosso, que até conseguimos exportá-lo, pelo menos durante algum tempo. Mas é tão original e tão próprio como são, se passarmos para o universo da música, o jazz ou os blues

A música é um dos grandes interesses de Eastwood. Haverá quem não saiba que o homem que tantas vezes empunhou – e com particular destreza, sem parcimónias – a pistola Smith & Wesson Model 29, prolongamento «natural» da mão do inspetor Harry Callahan (esse, o do célebre desafio «go ahead, make my day»), é doutor honoris causa da famosa escola de música de Berklee.

Eastwood compôs algumas das bandas sonoras mais expressivas dos seus filmes, com destaque para Mystic River, Million Dollar Baby e A Troca (as duas últimas foram até nomeadas nos Globos de Ouro da respetiva categoria).

Esta vocação foi passada a um dos seus filhos, Kyle, hoje um contrabaixista e compositor de renome, enquanto o pai continua a preferir o piano, e dirige inclusivamente um selo discográfico subsidiário da Warner Brothers, chamado Malpaso Records, que edita a música dos seus filmes. Eastwood, que tem discos editados (com destaque para Eastwood After Hours, gravado ao vivo no Carnegie Hall, que inclui algumas canções clássicas americanas, como The First Time Ever I Saw Your Face ou These Foolish Things, e extratos das suas obras para filmes), deslocou a sua atenção da country music para o jazz. Isso ajudará a explicar a sua inesperada abordagem, em 1988, à vida e à obra de Charlie Parker, no sublime Bird, e a perceber a desenvoltura com que, uma quarto de século depois, dirigiu Jersey Boys, que mostra a ascensão no panorama musical de Frankie Valli e dos Four Seasons.

A diversidade dos temas cobertos pelo currículo do cineasta ajuda a reforçar uma das suas regras profissionais: a recusa de submeter os seus filmes ao escrutínio prévio de grupos escolhidos pelos estúdios. Nunca o fez, em 45 anos de atividade. Por isto: «Penso que é uma prática que se torna redutora, uma vez que os realizadores, ouvidos esses grupos, tendem a fazer alterações nas obras. O que significa que acabam por moldá-las a um determinado grupo, seja ele social, político ou etário. Ora, eu gosto de viver na ilusão de que faço filmes para toda a gente, por mais diversas que se revelem as interpretações…»

Outra peculiaridade de Eastwood: ao contrário do que parece ser o hábito da maioria dos seus colegas, dispensa os gritos de «ação», para iniciar a filmagem de uma cena, e de «corta», para a terminar. Fica-se por um prosaico e económico OK…

Gosta de cumprir os planos de rodagem, o que o leva a ser considerado um dos campeões no rigor orçamental. E prefere atores com pouca maquilhagem, para acentuar a naturalidade. Fã de filmes clássicos como Os 39 Degraus (Hitchcock), O Vale Era Verde (Ford), Sargento York (Hawks) e Consciências Mortas (Wellman), confessou ter moldado a sua forma de representar nos estilos de quatro homens dos anos de ouro: Gary Cooper, Humphrey Bogart, Robert Mitchum e James Stewart.

Funciona como «agência de emprego» para a família, que não é pequena. Alegadamente, tem oito filhos – o «alegadamente» nasce da circunstância de ainda não ter reconhecido um deles – de seis mulheres. E só foi casado duas vezes… Namorou, nos intervalos das suas ligações mais prolongadas (ou nem tanto assim), algumas parceiras de profissão, como a francesa Catherine Deneuve, a sueca Inger Stevens e as compatriotas Jean Seberg, Jill Banner e Susan Saint-James. A segunda mulher – de papel passado, entenda-se, de quem se divorciou em 2014 –, Dina Eastwood, foi chamada a um pequeno papel de repórter em Blood Work – Dívida de Sangue. Nada de novo para ela, que era jornalista e pivot de uma TV californiana , antes de se casar. Quanto aos filhos, o desfile impressiona: Kimber participou em Poder Absoluto; Kyle andou por Bronco Billy, O Aventureiro e A Última Canção, por exemplo; Alison, a que tem uma carreira mais sólida, marcou presença destacada em Um Agente na Corda Bamba e Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal; Scott integrou os elencos de Gran Torino e de Invictus; Kathryn surge em Jersey Boys; Francesca teve a primeira oportunidade em Um Crime Real; por fim (convém recordar o oitavo passageiro, ainda sem reconhecimento paterno), Morgan pode ser vista em Million Dollar Baby.

Falta abordar a política, para fechar o retrato sumário. Não vale a pena atirar Clint Eastwood para o mesmo saco, fundo e escuro, onde podem morar Richard Wagner e Louis-Ferdinand Céline, agentes da grande arte mas acusados de opções inaceitáveis de antissemitismo. O realizador de O Sargento de Ferro é outra loiça: andou sempre mais próximo dos republicanos norte-americanos – já atrás se registou o seu apoio a três presidentes e a um candidato derrotado – mas recusou, de forma expressa e pública, pôr-se ao lado de George Bush. O pai, quanto mais o filho…

Define-se como um individualista libertário, embirrando sempre com os democratas, que lhe parecem mais próximos da tentativa de controlar a iniciativa e de ditar a forma de os cidadãos se comportarem, no seu país.

Gosta, assumidamente, do «vive e deixa viver», o que parece condizer com um liberalismo radical. As particularidades começam a notar-se quando se sabe que Eastwood apoiou os movimentos pró-escolha na questão do aborto, que é um defensor reconhecido do casamento entre pessoas do mesmo sexo e que, ao contrário de muitos dos que parecem estar na mesma trincheira que ele, advoga a necessidade de uma lei que regule («minimamente») o acesso às armas e a respetiva posse, afastando-se drasticamente das propostas da National Rifle Association (a que esteve ligado um outro homem do cinema, Charlton Heston) e sugerindo «o registo obrigatório de todas as armas e a proibição da venda através da internet.

Quanto à política externa, as suas posições também não primam pela meiguice: condena frontalmente o envolvimento norte-americano em todas as guerras desde a da Coreia à do Iraque, sem esquecer a do Vietname e a do Afeganistão. Isto porque entende que os Estados Unidos não devem manter o «estatuto» de polícias do mundo, algo que considera estar mais próximo de um complexo do que de uma qualidade. Para quem começou a vida profissional como nadador-salvador e instrutor de natação no Exército, já depois de ter sido empregado numa mercearia, guarda-florestal no combate aos fogos e caddy de golfe.

Apoiou Arnold Schwarzenegger quando este foi eleito governador da Califórnia. Foi eleito maior da pequena cidade de Carmel-by-the-Sea, na península de Monterey, através de uma candidatura independente (e não republicana) e auferindo um salário mensal de cerca de trezentos dólares. O mandato durou dois anos, mas foi suficiente para que Eastwood ficasse conhecido como um paladino dos pequenos comerciantes e da defesa do ambiente, devendo-se-lhe a construção de um anexo para a biblioteca municipal, de casas de banho públicas, de acessos pedonais à praia e de um parque de estacionamento para turistas.

E a polémica entrevista à Esquire, no passado mês de agosto? E Donald Trump? Faça-se fé nos esclarecimentos que se seguiram às notícias iniciais: «Perceber de onde vem» o candidato republicano não significa apoiá-lo, de forma convicta e entusiasmada. Ora o cineasta já afirmou que não vai apoiar o magnata, mas que não embarca nas «campanhas de ódio» com que muitos estão a tentar responder aos «disparates» de Trump. Não se coibiu, no entanto, de acrescentar que, entre este e Hillary Clinton, acabará por votar no republicano, que não precisou, ao contrário da antiga secretária de Estado e primeira-dama, da política para enriquecer. «Eu perdi dinheiro para fazer política. E estou certo de que, com um homem como Ronald Reagan, aconteceu exatamente o mesmo.» Conclusão: a cada um a sua, claro.

Mas fica a ideia de que não é só o cinema de Clint Eastwood que precisa de um lugar próprio – o último dos duros, em pessoa, também não vai em grupos.

*João Gobern começou a escrever em jornais e revistas em 1978. Passou por vários títulos (A Capital, Se7e, O Independente, Visão, Focus e Sábado). Passou por várias secções, mas sempre privilegiou a de cultura e espectáculos, em especial nas áreas de música, cinema e literatura. Freelancer desde 2005, colabora na Antena 1, na RTP e no Diário de Notícias.