Carla André, a mulher das ultramaratonas

Farta de ver os outros correrem o que ela não conseguia, Carla André lançou-se ao trabalho. Hoje dez minutos, amanhã o céu. E, pelo meio, os 217 quilómetros da Badwater 135, neste ano, na Califórnia, que fizeram dela a primeira portuguesa a terminar uma das provas mais duras do mundo, segundo a National Geographic. É favor deixá-la passar.

Carla André não é mulher que se impressione demasiado com escorpiões – volta e meia, lá está a dormir no deserto, sobre pedras. Nem com jantares requintados ou bolsas femininas –, chega a correr com mochilas de dez quilos às costas como um navy seal, alimentando-se de géis e frutos secos. Quem a vê assim sorridente e arranjada, executiva de um banco, não imagina a rebeldia com que se tornou a primeira portuguesa a terminar, em julho deste ano, a ultramaratona Badwater 135, na Califórnia, considerada pela National Geographic uma das mais duras do mundo. Correr é como respirar, para ela: não viveria se uma destas duas coisas lhe faltasse. Antes ter um escorpião a entrar-lhe no saco-cama numa noite ao relento.

«A corrida começou na minha vida em 2008, em sessões de cinco a dez minutos que aumentaram gradualmente», conta a ultramaratonista de 39 anos, gerente do Novo Banco na Portela de Sintra. Ainda hoje lhe custa a crer que os bofes lhe saíam pela boca por tão pouco. Credo, que ninguém a visse na rua a arfar daquela maneira. «Não corria mais porque não aguentava.» E então apelou a toda a sua obstinação para ir subindo a dose. Ao menos um passo por dia, até estar apta a fazer os 217 quilómetros da Badwater em 44 horas, 35 minutos e 14 segundos.

«Esta ultramaratona juntou dois sonhos: correr nos EUA, onde tenho o meu irmão mais velho a morar, e vencer um desafio único.» Ser a primeira portuguesa na prova deixou-lhe um gosto especial ao concluí-la em 19º lugar na classificação feminina, 72º da geral.

«Sempre achei que seria demasiado difícil entrar e, se lá chegasse, de realizar», confessa Carla, movida a sonhos. A própria inscrição é penosa por só aceitarem cem atletas de todo o mundo, em que cada um tem de contar três provas de 161 quilómetros no currículo e é submetido a um extenso questionário para a organização avaliar a massa de que é feito. «Passada essa fase, apliquei-me na preparação física para a distância, preparação para o calor e a preparação psicológica.» Tradução: corria semanalmente mais de cem quilómetros, durante quatro meses. Fazia sessões de sauna no Holmes Place da Quinta da Beloura, com step e bicicleta para aumentar a frequência cardíaca no calor. Aos domingos, ia sozinha de carro para o Alentejo despachar maratonas debaixo de 40 graus.

«Mulher é lutadora, não desiste. Contrariar a mente é o que nos permite ultrapassar as dificuldades ao longo do percurso, porque é impossível não sofrer numa ultramaratona», diz. Na Badwater 135 (de 135 milhas, 217 quilómetros) não existem recursos de ilusionista para cruzar 4500 metros a pique, só vontade. A partida é na Bacia de Badwater, 86 metros abaixo do nível do mar, no célebre Vale da Morte. A meta no Monte Whitney, o ponto mais alto da região continental dos EUA, a 4421 metros de altitude. Tudo isto na zona mais quente do mundo, com temperaturas acima dos 50 graus, na altura mais quente do ano (18 a 20 de julho de 2016). «O corpo acusa cansaço, mas eu sigo porque estou preparada para focalizar o objetivo.»


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Uns meses depois de começar na rua, a lisboeta conseguiu aguentar 60 minutos sem parar, um orgulho. Em 2010, correu os dez quilómetros da Corrida do Tejo em 01h09m. Em dezembro do ano seguinte, a primeira maratona em Lisboa: chegou dorida, com o tempo de 04h22m, mas a pensar que iria desafiar-se mais dali em diante. «Em julho de 2012 estreei-me na Ultramaratona Atlântica Melides-Troia, 43 quilómetros em areia, e quis aumentar a coleção», ri-se a atleta amadora. Largar Paço de Arcos aos 25 anos e ir viver para Mafra deu-lhe a serra de Sintra, o amor pelos trilhos na natureza. Em 2013, corria os seus primeiros três dígitos de Lisboa a Fátima – 146 quilómetros em 25 horas – na Ultramaratona Caminhos do Tejo.

«A força vem de não haver desculpas para mim. Todos os dias teria inúmeros argumentos para dar “só hoje” uma facadinha no plano de treino, mas cumpro-o na mesma.» E se as pernas lhe vacilam? Reza. A fé é uma misteriosa ajuda que a ampara tanto na corrida como quando esteve três meses imobilizada num colete em 2005, após um grave acidente de viação. «Fraturei uma vértebra tão perto da estrutura nervosa da coluna que havia risco de condicionar a mobilidade. A verdade é que desde que senti a vida por um fio aprendi a relativizar.» A corrida é uma extensão desta sua forma de estar.

Meio a brincar, Carla André soma mais de 50 maratonas e ultramaratonas (só em 2014 foram 20 ultras). A Badwater soube-lhe a vitória, mas marcou-a mais ainda a Maratona das Areias em 2015: 250 quilómetros pelo deserto do Saara, ligando os pés a cada manhã com medo das bolhas. «É uma experiência de vida. Aprendemos a subsistir sem nada e a sobreviver.» Por isso voltou ao deserto a 4 de novembro deste ano, 165 quilómetros em Omã, do oásis de Bidiyah ao mar Arábico. «Fui a segunda mulher a chegar ao fim. De repente, decidi que vou fazer também a Jungle Marathon na Amazónia em 2017, 254 quilómetros no meio da selva.» Nem ela sabe o que se segue. Pode ser o céu.

«Gosto de me superar, daí ter sempre aumentado a dificuldade desde que comecei», justifica. O mais útil de correr diariamente, à parte de libertá-la do stress, foi fazer que o vício se instalasse de vez, incurável.

«Os dias que tiro de férias são para correr.» Se no fim de semana avia cem quilómetros, na segunda entra às 08h30 no banco impecável como de costume – os clientes adoram a metamorfose. «Descobrimos que quanto menos tempo temos, melhor o aproveitamos, e melhor sabe cada minuto de descanso. Se é isto que o coração me pede, o que é que eu posso fazer?»

 

ESPECIAIS DE CORRIDA

Nos poucos anos que leva desta arte de muito palmilhar sem ficar pelo caminho, Carla deu-se conta de que ser solitária é diferente de estar só. Adora correr sozinha, sim. A sensação sublime de ser uma mulher na paisagem capaz de tudo (inclusive não comer fora nem andar às compras o ano todo para poupar para as viagens e inscrições). «Em prova, isso ajuda-me a saber gerir as dificuldades sem ponto de apoio», explica a corredora. Por outro lado, também adora o espírito de entreajuda que apenas existe com pessoas por perto, as que correm e as que apoiam. «Na Badwater tive comigo o meu ex-namorado Hugo, que viveu o sonho como se fosse dele, o meu irmão Paulo, médico neurologista a fazer investigação no Instituto de Tecnologia de Massachusetts há mais de 20 anos, e o meu grande amigo luxemburguês, Tun Mestre, com quem falava todos os dias no Facebook sobre a minha preparação para a Maratona das Areias (ele já a tinha feito três vezes) e se ofereceu para me acompanhar aos EUA.»

O entusiasmo dos três emocionou-a: foram incansáveis a revezar-se para levarem o carro de apoio, correrem um pouco ao seu lado, darem-lhe comida e bebida. Também a confortou a presença de Carlos Sá, único ultramaratonista português além dela e uma inspiração. «Foi ele o vencedor da Badwater em 2014!» Ele quem a ajudava a montar a tenda no deserto em 2015, sempre protetor. O atleta desistiu este ano a menos de 65 quilómetros da meta, no monte Whitney – os 700 quilómetros da travessia da Gronelândia, em fins de maio, levaram-no ao limite. Mas estava lá, e a qualidade dessa presença vale ouro. As bolhas nos pés não são nada diante de uma força assim.


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