Bárbara não está sozinha

Notícias Magazine

Dá esperança a indignação com que foram acolhidos os impropérios da juíza que está a julgar o caso Bárbara-Carrilho.

Gosto de sinais de que o mundo está a mudar. Gosto de ver, por exemplo, toda a gente chocada com as palavras de uma magistrada – e gosto de ver isso não só porque a reverência é a antecâmara dos totalitarismos, mas também porque quando o corporativismo dá lugar à indignação, e há motivos justos para ela, isso é de aplaudir. Só tenho, aliás, pena de que isso não aconteça em tantos outros casos, em que a cidadania não é respeitada, em que um arguido é tratado como um culpado, sempre ainda antes de o ser.

E não, não estou a falar do facto de a juíza Joana Ferrer ter tecido comentários sobre o casamento de Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho. Sendo ela uma juíza, ou seja, estando ali para julgar, é importante que faça todas as perguntas que julga terem de ser feitas, até aquelas que não ficam bem, parecem mal ou não vão ao correr do pelo do que parece, que como toda a gente sabe nem sempre é. Uma juíza tem direito a questionar, a pôr em causa e, até – e esta é para quem vê séries de justiça –, a tentar encontrar as contradições e podres mesmo em quem parece ser o bom da fita.

Já outra coisa é a juíza Joana Ferrer ter tratado Bárbara Guimarães simplesmente por Bárbara, e Carrilho ter merecido sempre o aposto de senhor professor. Isso diz tanto sobre o nosso Portugal pobre e hierarquizado. Diz dos «preconceitos» da juíza, como acusou a Associação das Mulheres Juristas, mas diz mais sobre nós todos que criámos e alimentamos todos os dias esta tradição bafienta com as nossas deferências tontas – oh, há quanto tempo os espanhóis já se tuteiam na rua! Diz do ambiente em que se tornam possíveis todos os tipos de violência – seja com luvas de pelica seja com a pele descarnada.

Depois, a gravidade aumenta quando a juíza não se coíbe de dizer que lhe «faziam impressão mulheres vítimas de violência doméstica que não apresentavam queixa». Claro que fazem. Mas é preciso, sobretudo, perceber porque não o fazem. E talvez a explicação esteja na própria atitude desta juíza que faz que qualquer mulher na mesma situação se questione sobre se tem mais a perder do que a ganhar por fazer queixa.

E que dizer do argumento, segundo ela fraquinho, de que a apresentadora tinha vergonha, com tanta «divulgação, tanto apoio que se criou para a violência doméstica»? Assustam-me juízes dentro da sua redoma de cristal, e foi aí que esta mostrou viver. Qualquer pessoa com uma leve relação com a justiça deve ter lido sobre isto, como aliás a atitude desta mostra. Da violência psicológica que acompanha a física. E, claro, das mulheres que, mesmo tendo feito queixa, acabaram assassinadas.

Mas, como eu dizia no início desta crónica, algo mudou neste reino de juízas opinadoras e homens agressores. É que as mulheres que têm a coragem de chegar à barra do tribunal já não estão sozinhas. Já têm atrás delas uma sociedade que se indigna e cuja indignação as protege. Já não têm de encarar a suspeita que sempre surgia quando se olhavam ao espelho de que, no fundo, a culpa era delas.

A história deste julgamento, e do que nele se provar, daquilo que aconteceu a Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho, poderá vir a ter repercussões sérias na sociedade portuguesa. As primeiras estão já à vista.

[Publicado originalmente na edição de 21 de fevereiro de 2016]