As minhas cartas de Natal

Notícias Magazine

A minha tartaruga chamava-se Província Ultramarina. É estranho mas tem explicação. Foi um vizinho que lhe deu o nome e ma deu. Ele era estranho com nomes, a começar pelo dele. Todos lhe chamávamos Sr. Kropotkine, nome russo, o que ele não era. Uma vez ouvi a mulher a chamar-lhe «ó Gouveia», mas ela própria logo emendou para «vou sair, Kropotkine, mas já venho» quando me viu na sala. O meu pai contava que quando chegou em 1929, no vapor João Belo, o Kropotkine já estava em Luanda.

Ele tinha sido bombista, no Porto, e desterraram-no para a fortaleza de Luanda quando a mecha se apagou e o atentado contra um governador civil falhou. O meu pai lembrava-se de ainda o ver a empurrar um tonel de água pela calçada empedrada da fortaleza acima. Mais tarde o Sr. Kropotkine já era contabilista numa firma da Baixa, mas tinha de ir dormir à fortaleza todas as noites. Aos domingos também saía, para ir à missa na Sé. Tinha deixado de ser anarquista, já o haviam perdoado, mas não podia sair da colónia. Mandou vir a mulher e no fim da guerra (a Segunda) mudaram-se para o meu bairro, numa vivenda em frente à velha Igreja de São Paulo onde fui batizado. Eles nunca tiveram filhos e foram os meus padrinhos.

No meu bairro já o Sr. Kropotkine ia à missa todos os dias, era o único homem branco a fazê-lo, tirando o frade capuchinho barbudo, de hábito de cordão e sandálias. Do passado, além da homenagem ao pensador anarquista russo, seu nome de guerra no tempo das bombas, o meu padrinho só guardara um relógio que tinha no bolso do colete, de marca Roscopf. «Roscofe?!», espantou-se o meu pai quando o assunto veio pela primeira vez à baila. Ele tirou solenemente o relógio do bolsinho. O mostrador tinha grandes números negros até 12 e, em vermelho velho, a marca Louis Roscopf SA. Disse: «Tenho-o há 40 anos e só parou quando fui preso e não lhe dei corda.» Sentou-se e rematou: «Foi feito por bons operários para operários pobres.» O meu padrinho era o homem com mais consciência proletária no meu bairro. O que não o impedia de já ser conservador e obediente às leis do Estado.

Ele já trabalhava por conta própria, sentado na varanda, que só abandonava para ir à missa ou aos Correios postar cartas para empresas de Hong Kong, Singapura ou Santiago do Chile. Recebia revistas comerciais em inglês, com muitos anúncios e especializara-se em importar produtos que não havia na cidade – só mais tarde soube que o meu padrinho foi o primeiro frequentador da internet que conheci. Ele mandou vir minúsculos chapéus de chuva coloridos para festas infantis, cones de plástico que faziam a bola de gelado girar sem precisar de lamber à volta, uma máquina para fazer anúncios de empresas… Com esta última fizera o cartaz em baquelite que encimava a varanda: «Kropotkine – Import-Ex». A máquina estragara-se antes de compor as letras todas. A garagem do Sr. Kropotkine estava cheia de caixas de cartão com insucessos de venda.

Por um Natal, ofereceu-me a tartaruga, que mandara vir de Belém do Pará. De uma dúzia, só chegara aquela e ele decidiu que não valia a pena encetar um modelo de negócio só com um exemplar. Deu-ma. No atlas que a minha mãe trouxera do Colégio de Odivelas, eu e o Sr. Kropotkine vimos que as tartarugas eram marinhas, de carapaça alongada e nadadeiras. Bem diferentes do animal terrestre de pequenas patas grossas de elefante, e carapaça como um capacete militar, que se pôs a passear no meu quintal – um brasileiro jabuti.

O Sr. Kropotkine recusou-se a chamar-lhe cágado, sugestão do meu pai. Entretanto, no atlas, ele viu que, apesar de tudo, tartaruga, jabuti e cágado eram primos da família dos quelónios. Nesse ano, Angola deixara de ser colónia e passara a ser província ultramarina. Daí, o batismo que logo foi feito: «Vais passar a chamar-lhe Província Ultramarina», disse-me o Sr. Kropotkine. O meu pai comentaria mais tarde o exagero do compadre na adesão ao regime. Muito, muito mais tarde, eu julguei entender no meu padrinho uma ironia subtil com que tratava o corte com o seu passado de reviralho.

A pachorrenta foi durante mais de uma década a portadora da minha carta ao Pai Natal. Eu escondia-a entre o pescoço e a carapaça e o jabuti escondia-se nos buracos do quintal. Só saía em março, durante as chuvas, ainda com a carta sob a carapaça. Nunca vou a Luanda sem ir ao meu antigo quintal, quase todo já cimentado. Pergunto se viram um cágado e ligo pouco à resposta.

[Publicado originalmente na edição de 4 de dezembro de 2016]