As mil e uma faces de Jerry Lewis

Notícias Magazine

Um palhaço com roupas de prisioneiro de um campo de concentração dá indicações a um homem fardado de oficial nazi. A imagem é intrigante, e ainda mais quando percebemos que o palhaço é Jerry Lewis e que a explicação está na ambiguidade de o ator ser também realizador. A cena aparece num documentário da BBC sobre o filme misterioso de Jerry Lewis que apenas ele próprio e poucos mais terão visto. Em 28 minutos, reencontrei o ator que em miúda me fazia rir pelas expressões e gestos excessivos, coisas de escorrega e cai, o humor slapstick que resulta sempre porque mexe com o nosso prazer primário de ver o outro em apuros. Pedregulhos a cair sobre Bip Bip, Tom trapaceado pelo minúsculo Jerry. Mas este Jerry que me prendeu a atenção é outro, é a personagem de rosto multiplicado em caretas, corpo desconjuntado e respostas absurdas. Ou antes, é ainda outro Jerry, é o homem que quis fazer um filme sério sobre um palhaço preso num campo nazi por ter sido apanhado bêbedo a troçar de Hitler. O palhaço – conhece-se o guião – acaba por acompanhar as crianças do campo para a câmara de gás. Não há aqui humor, talvez nem possibilidade de humor.

Nem imaginava que Lewis continua vivo, como só depois verifiquei. Está à beira dos 90 anos e ofereceu o espólio à Biblioteca do Congresso dos EUA, nele incluído o filme O Dia em Que o Palhaço Chorou, com a condição de que não pode ser exibido antes de 2025. Comecei a ver o documentário atraída pelo nome dele associado ao Holocausto e a um mistério. A apresentação é de David Schneider, um ator que personifica o judeu que faz humor sobre ele próprio e sobre os judeus, tema tantas vezes declinado. Mas o filme de Lewis é sobre o Holocausto e as imagens que o documentário nos revela, resgatadas a arquivos e museus, são estarrecedoras de realismo. Rodado na Suécia, o filme correu mal e levou ao corte total da amizade do realizador com o produtor sueco. Restam as memórias do filho deste, que conta pormenores: Jerry Lewis lá em casa a jantar salmão preparado pela mãe, e o bizarro facto de o americano deitar para o lixo a roupa interior em vez de a mandar lavar. No final, vemos Jerry Lewis a responder, em público, a uma pergunta sobre o palhaço. Não, ninguém vai ver esse filme. Porque ele não quer. Porque o filme é mau. Porque podia ter sido poderoso mas ele escorregou e o resultado não presta.

Não há gargalhadas nesta história de Jerry Lewis. Gargalhada, aí está uma palavra extraordinária – riso é mais pequenino, mais poupado, não imita o som que a garganta solta desbragada. Talvez um sorriso possa sair deste documentário curto e denso em que o velho parceiro de Dean Martin tem todos os rostos. A profunda tristeza do olhar no campo de concentração, a loucura da desajeitada personagem que faz escorrer água das orelhas para a boca, a mágoa zangada com que fala do filme. Depois de ver o documentário, procurei na internet informações, pormenores, mais peças para compor o puzzle. Percebi que estava a encantar-me com uma história conhecida, largamente tratada em jornais e biografias e compêndios. Mas para mim era uma história nova, tão nova como a primeira vez que um bebé dobra o riso e ficamos maravilhados. E gostei da sensação. Porque as descobertas que fazemos são sempre nossas, tão nossas que ninguém pode roubar-nos essa alegria. E vamos lá: a ideia de um palhaço preso num campo de concentração que não deixa as crianças sozinhas na câmara de gás é tão boa que não interessa se o filme existe, se é bom ou mau, se um dia vamos conseguir vê-lo.

[Publicado originalmente na edição de 17 de janeiro de 2016]