As buzinas dos táxis de Paris e o velho Gershwin

Notícias Magazine

Há 70 anos que se anda a tocar Um Americano em Paris, de Gershwin, com um erro: os sons que evocam as buzinas dos táxis parisienses têm sido interpretados em tons diferentes dos que o compositor escreveu. O que está na partitura não tem uma leitura óbvia e só agora especialistas que estudam a obra de George Gershwin publicaram esta conclusão, fundamentada em documentos e declarações de pessoas próximas do compositor. Há mesmo um familiar que confirma que o compositor tinha comprado instrumentos especificamente para este trecho mas que os procurou e não consegue encontrá-los, depois de tantas mudanças de casa devem ter ficado perdidos.

Não é que fique indignada ou assustada com uma notícia como esta, publicada nesta semana no The New York Times. Deve haver por aí imensos erros de interpretação, coisas que estavam na cabeça dos autores e que se desviam da intenção, ou melhor, da escolha que fizeram.

Um Americano em Paris começou por ser uma obra musical no final dos anos 1920, e em 1951 foi transformada numa superprodução de cinema por Vincente Minelli com Gene Kelly e Leslie Caron, que dançam no final, apaixonados e rendidos, uma longa sequência de 17 minutos. A música é extraordinária e algumas das canções entraram para o American Song Book. ’S Wonderful (a tradução da expressão francesa C’est magnifique que Kelly e o francês Georges Guétary cantam com sapateado), Someone to Watch over Me, Our Love Is Here to Stay, e mais um punhado de outras que só de ouvirmos os primeiros acordes começamos a cantarolar. E que já ouvimos mil vezes em interpretações diferentíssimas.

Quando era miúda, detestava musicais. Aquela cena de estarem muito bem a conversar e de repente desatarem a cantar irritava-me, parecia-me uma mistura parva. Ou era filme ou era música. O Gene Kelly a deitar-se por cima do piano para cantar, ai ai, que lamechice (a Michelle Pfeiffer a cantar Makin Whoopee no Fabulous Baker Brothers é outra loiça, convenhamos). E o mesmo para o Fred Astaire e a Ginger Rogers ou a Cyd Charisse. Não me impressionavam os sapateados e as danças. Era como se o filme parasse e eu tivesse de esperar pelo fim da canção para retomar a história.

A história que o filme conta é banal. Um pintor americano com cavalete debaixo do braço e pincéis é coisa que rima bem com Paris, sobretudo se passar a vida em bistrots. Primeiro tinha uma namorada rica, mas como acontece tantas vezes na ficção deixava-a por uma pobre bailarina que trabalhava ao balcão de um café e que por acaso era namorada do maior amigo dele, o pianista interpretado por Oscar Levant. E a Leslie Caron, belas pernas e dentes de ratinho.

O melhor de tudo, quando aparece um erro como este do tom das buzinas, é que temos acesso no computador a registos de som e imagem que nos fazem descobrir mil pormenores a que não demos importância. Eu sabia lá que tinha ouvido o Gene Kelly a cantar Gershwin, lembrava-me lá disso. E sabia lá que existia uma instituição chamada The Gershwin Initiative, na Universidade do Michigan, onde a extensa obra de um compositor que morreu antes de fazer 50 anos é estudada e fixada. O homem que compôs Rhapsody in Blue e Porgy and Bess, um talento gigante.

E por isso agora vou voltar a ver no YouTube aquele bocadinho do Our Love Is Here to Stay, em que Gene Kelly e Leslie Caron vão hesitando até caírem nos braços um do outro, num cais de Paris todo feito em estúdio. A Ella cantava isto muito melhor, o melhor é continuar no YouTube e ouvi-la.

E tudo isto por causa das buzinas dos táxis de Paris.

[Publicado originalmente na edição de 6 de março de 2016]