«Não percebes nada disto. Isto não é coisa para ti. Dá cá que eu faço. Mais valia estares quieto(a). Onde é que estavas com a cabeça quando pensaste que isso era boa ideia? Se é uma coisa difícil de fazer, perguntas-me a mim. Tu não sabes. Não sabes fazer nada. Se fazes tu, sai asneira. Já sabes que és incompetente. És um(a) burro(a). Estúpido(a). Não tens capacidade nenhuma. Parece que não pensas. Se calhar não pensas, mesmo. Não vales nada.»
«Quem é que vai comer isto? Eu não sou. Isto está uma merda. Não sabe a nada. Está frio. És um fiasco. Não vales nada. Nem para cozinhar serves. Sabes pôr comida a aquecer, ao menos? És um(a) anormal. Um(a) bêbado(a). Qualquer dia conto aos teus pais o que tu és. Eles não sabem. Se calhar sabem e têm vergonha de ti. Eu tenho vergonha de ti.»
«Vais assim vestido(a)? Já não tens corpo para isso. Veste roupa para a tua idade. Não sejas patético(a). Estás gordo(a). Estás magro(a). Pareces um cão escanzelado. Isso não te assenta bem. Vai tapar-te. Vai mudar de roupa. Não vou para a rua contigo nesse estado. Que ninguém te veja assim.»
«Queres o divórcio? E vais viver do quê? Do ar? Quem é que paga as contas nesta casa? Quem é que põe comida na mesa? É com o teu ordenado que vais viver? Tu e os filhos? Sou eu que te sustento. Não tens trabalho, não tens ordenado. E quando tens, ganhas uma miséria. És um(a) inútil. Se te queres divorciar, primeiro pagas o que me deves. O que investi neste casamento. Fui eu que montei esta casa. E quem fica com os filhos sou eu. Se te queres ir embora, vais tu, mas os filhos ficam comigo.»
São palavras fortes, não são? Imaginem ouvi-las todos os dias. Na privacidade do lar ou num local público. À frente de outras pessoas ou à frente dos filhos. Num jantar com amigos ou no carro, no regresso a casa. Anos e anos disto. Sem nunca haver uma ameaça física. Sem nunca terem um dedo encostado. Sem nunca magoar na pele. Na carne. E então? Dói menos, porque não deixa nódoa negra? É menos violento por causa disso? A violência verbal magoa. Dói. Fere. Mata. Mata devagarinho. E não acontece só em ambientes tramados. O álcool pode ser combustível para a fogueira da descompensação e se juntarem tudo num cocktail de falta de dinheiro, falta de emprego, falta de condições, falta de instrução, falta de meios, falta de apoio, falta de informação… aí tudo piora, claro. Mas muitas vezes não há nada disto. Há só o vazio. O buraco onde antes estava uma esperança de uma relação equilibrada.
Sim, são palavras fortes. Tão pesadas como a vergonha, a culpa, a humilhação, o medo. Medo que se saiba. Medo de ficar sozinho. Medo de continuar ali. Medo do que vai acontecer a seguir. Medo do passo a dar. Medo de partir. Medo de ficar. Acham mesmo que só os outros é que têm este medo? Com vocês nunca aconteceria, certo? Não se sujeitariam a isto, não aturariam, não admitiriam. Nem vocês nem ninguém que vocês conhecem. Acham estranho que alguém do vosso ciclo mais próximo, bem informado, atento, inteligente, passasse por isto. A sério? Então levantem a cabeça. Se estiverem a ler isto na revista, ao domingo, no monitor da secretária durante a semana, no telemóvel na viagem de metro, levantem a cabeça e olhem à volta.
Quantas pessoas, dessas que estão a ver agora, têm vocês a certeza de que não ouvem isto a toda a hora? Quantas pessoas com quem falam constantemente, com quem almoçam ou tomam café ou vão fumar um cigarro rápido… quantas têm vocês a certeza de que não têm este medo, esta vergonha, esta culpa? Não. Não acontece só aos outros. E a quem vocês não conhecem. Acontece a mais gente do que podem supor. E algumas talvez sejam da vossa família.
[Publicado originalmente na edição de 21 de fevereiro de 2016]