O ano de 2016 pode ficar para a história como aquele em que as mulheres passaram a ocupar os lugares de topo na política global. Hillary Clinton tornou-se a primeira mulher a ser nomeada como candidata à Presidência dos Estados Unidos da América. Theresa May juntou-se a Angela Merkel na liderança de dois dos principais países da Europa. Este foi também o ano de afirmação de Catarina Martins e de Assunção Cristas, as duas líderes partidárias numa arena política em que as mulheres estão ainda claramente sub-representadas.
A nomeação de Hillary é o momento para ouvir, na primeira pessoa, Catarina e Assunção sobre o caminho já trilhado e sobre as desigualdades que sobram. E para compreender que portas se abrem quando há uma mulher a lutar pelo lugar mais poderoso do planeta.
Leia também a opinião de Assunção Cristas.
Depois de integrar a liderança bicéfala do Bloco de Esquerda, Catarina Martins afirmou-se como líder do partido e conquistou meio milhão de votos nas últimas legislativas. Foi escolhida como uma das 28 personalidades que estão a agitar a Europa e escrutinada pela mudança de visual, pelas opções de maquilhagem, pela postura e pela voz. Aos 42 anos, mães de duas filhas, Catarina Martins descobriu que o «clube de rapazes» que ainda é a política aceita mulheres que já provaram o seu valor. Mas continua convencida de que elas têm de trabalhar o dobro para lá chegar.
Apesar de a Hillary Clinton afirmar publicamente uma agenda pelos direitos das mulheres e das crianças, penso que isso não corresponde às políticas que ela pratica ou aquilo que ela representa na política americana. A Hillary apoiou bombardeamentos e guerras em retaliação ao 11 de setembro, tem relações com a Arábia Saudita. Faz parte de um sistema opressor que em boa parte é opressor com as mulheres.
A candidatura da Hillary, já de si simbólica por nunca antes ter havido uma mulher candidata à presidência dos EUA nos principais partidos, passou a ter um simbolismo ainda maior – é uma mulher a concorrer contra um misógino. Pela situação degradante de ser candidata contra um candidato chamado Donald Trump, que além de representar o pior da política selvagem, imperial e neoliberal, é um homem que acha que as mulheres não valem nada, tem de ser apoiada.
Mas acho que as mulheres precisavam mesmo era de uma feminista. Muitas feministas americanas estavam do lado do Bernie Sanders, que é mais feminista do que a Hillary, na minha opinião. O Sanders compreende as causas estruturais da desigualdade e sabe que a meritocracia não é suficiente para facilitar a vida às mulheres. Uma mulher não feminista não vai utilizar o espaço político para promover a igualdade porque acaba por ser portadora de uma utopia liberal que acredita que pela meritocracia as mulheres acabarão por se afirmar. O facto de haver algumas mulheres muito bem-sucedidas não nos diz nada sobre as reais condições da desigualdade. Ninguém está a ver a Hillary Clinton levantar-se a favor da emancipação das mulheres na Arábia Saudita. O que é que a Angela Merkel e a Margaret Thatcher fizeram pela igualdade entre homens e mulheres? Pelo contrário, as suas ações políticas – a desregulação do mercado de trabalho, o enfraquecimento dos serviços nacionais de saúde – tendem a desproteger quem já está mais desprotegido e a cavar fossos de desigualdade. As mulheres que já estão em situação precária ficam numa situação mais precária ainda.
Ainda assim, apesar de discordar profundamente das posições políticas da Hillary Clinton e de estarmos em pontos opostos a nível ideológico, só um cego não vê que ela sofre ataques por ser mulher. Tenho várias críticas para lhe fazer, mas não ao nível das características pessoais, área em que ela costuma ser muito atacada. Um homem que seja capaz de se reinventar tanto como ela se reinventou não é considerado um homem frio, mas sim uma grande cabeça política. E a Hillary é de facto uma grande cabeça política. Num homem, uma carreira semelhante seria considerada estrondosa. Mas as mulheres têm de ser recatadas, como a esposa do Temer.
Aconteceu o mesmo com a Manuela Ferreira Leite que foi muito atacada por ser mulher. Mais uma vez: politicamente, tudo me afasta dela. Mas acho que ela teve muita coragem. Foi atacada por ser fria e má, por ter negociado, por ter cedido, como se não tivesse ideia do que estava a fazer no PSD. Os estereótipos todos. E, como se viu, aqueles que a substituíram estavam muito menos preparados do que ela.
Passado aquele período a seguir às eleições em que se tentou justificar os resultados por tudo menos pela política, sinto que o paternalismo com que fui tratada se dissipou um pouco. Continuo a sentir, de forma geral, que tenho de me esforçar mais e de trabalhar mais do que os meus colegas homens. Quando um homem erra foi porque lhe correu mal. A mulher é uma tonta. Mas agora que me provei fiquei relativamente salvaguardada. Acontece assim com mulheres na liderança – são temporariamente recebidas no clube dos rapazes. É claro que continuo a receber comentários do tipo: «Tem um corte de cabelo novo…»
Admito que por vezes adquiro certas características masculinas para não ser atacada. Eu tenho o problema da voz, como muitas mulheres. Uma mulher não se pode irritar porque se fizer isso é considerado histeria. No homem é visto como exaltação, mas na mulher é muito negativo. Eu tento vigiar o tom agudo da minha voz no meio de uma discussão. Não é algo racional, não gosto de o fazer, mas tenho noção de que o faço para me proteger.
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