A verdade para todos

A verdade chocante sobre o encobrimento de uma série de abusos sexuais a menores por parte de padres de Boston é a matéria de O Caso Spotlight. A Notícias Magazine falou com o realizador, Tom McCarthy.

Vivemos a euforia do cinema americano com as suas histórias reais, quase todas apenas «inspiradas em factos verdadeiros». Neste ano, nos Óscares, a tendência continua com filmes como A Rapariga Dinamarquesa, de Tom Hooper, A Ponte dos Espiões, de Steven Spielberg, The Revenant – O Renascido, de Alejandro G. Iñarritu, A Queda de Wall Street, de Adam McKay, e O Caso Spotlight, de Tom McCarthy. Este último não inspirado, mas sim totalmente baseado num acontecimento: o maior escândalo sexual da Igreja Católica na América e a sua descoberta pela equipa de jornalistas do The Boston Globe, intitulada Spotlight, que investigou e descobriu provas que acusaram padres da região em centenas de abusos sexuais de menores com conhecimento e conivência das hierarquias superiores. Foi a maior descoberta relacionada com pedofilia envolvendo a Igreja Católica e obrigou a um ato de contrição de toda a sua estrutura no mundo inteiro. O filme de McCarthy não tenta demonizar o clero, mas relatar a força e o poder do mais nobre jornalismo de investigação.

O Caso Spotlight foi feito com total colaboração dos jornalistas do The Boston Globe e revela a forma ardilosa como a arquidiocese de Boston conseguiu, durante décadas, abafar sucessivas queixas de menores e pais e encobrir um crime continuado que manchou a reputação de uma das mais católicas cidades americanas. Josh Singer e Tom McCarthy escreveram um argumento que não omite nomes, situações e factos. De alguma forma, estamos no terreno da tradição mais pura do cinema de investigação dos anos 1970, em que obras como Network – Escândalo na TV, de Sidney Lumet, Os Homens do Presidente, de Alan J. Pakula, ou O Síndroma da China, de James Bridges, faziam furor e enalteciam os valores da mais nobre arte do jornalismo: a procura intransigente pela verdade. O sucesso de O Caso Spotlight, numa altura em que a imprensa atravessa o seu maior desafio, é um sinal de que as grandes causas jornalísticas ainda apaixonam os espetadores contemporâneos. A sua caminhada com alguns triunfos na temporada dos prémios é sinal de que o cinema e o jornalismo mantêm um papel relevante na sociedade e na formação da consciência cívica.

O Caso Spotlight não foi feito para mudar o mundo mas para ajudar a não esquecer. «Este filme é um grito de alerta para todos os cidadãos quanto à importância do grande jornalismo! Um tributo aos grandes repórteres de investigação», começa por dizer Tom McCarthy num encontro para a imprensa internacional no Festival de Toronto. E continua: «O grande receio de um jornalista é perder uma história e ficar com remorsos por não ter explorado mais aquela pista! O que o Marty [Baron, diretor do Boston Globe] diz ao cardeal é muito importante: “precisamos de estar isolados”. E diz mais: que é imperioso que a imprensa seja o cão de guarda da sociedade. É verdade e é tão complicado ao mesmo tempo. Por alguma razão, as instalações do Boston Globe são nos subúrbios da cidade.»

Também em Toronto encontramos um dos atores de excelência deste filme, Liev Schreiber, conhecido de papéis como A Esfera, de Barry Levinson, e A 5ª Vaga, de J. Blakeson. Liev interpreta o diretor do Boston Globe, Marty Baron, o homem que decide avançar numa investigação que para todos parecia impossível dado o poder da Igreja Católica na cidade. «Seria tremendo se este filme conseguisse incutir nos mais jovens a paixão pelo jornalismo, sobretudo nesta fase de descrédito que os jornais americanos atravessam. Esta transição para o jornalismo digital é mais grave do que se pensa. Com este filme, Tom Mc-Carthy conseguiu lembrar-nos o quão essencial é o trabalho de um jornalista».

O curioso com o realizador Tom McCarthy e o reconhecimento com este trabalho é que chega logo a seguir a O Sapateiro Mágico, uma fantasia com Adam Sandler que foi devastada pela imprensa mundial, de tal forma que está nomeado nos Razzies (os troféus que gozam com os piores do ano) com esse filme e multinomeado nos Óscares com O Caso Spotlight («sim, é de doidos um ano estar a ser trucidado, noutro aclamado, mas continuo a defender O Sapateiro Mágico»). Seja como for, o passado de McCarthy como argumentista e cineasta é recomendável: A Estação (2003) e O Visitante (2007), pequena pérola sobre anti-preconceito, eram filmes com uma minúcia humanista notável.

O aspeto humano do grupo de jornalistas de investigação Spotlight foi algo que lhe interessou explorar: «No momento em que descobrem o grau e a escala do escândalo acontece algo incrível: ficam ao mesmo tempo excitados e horrorizados. Contaram-me que sentiram a vertigem do furo jornalístico, mas também arcaram com o horror humano do que descobriram…»

O escândalo denunciado pela equipa do Boston Globe foi publicado em 2002, após uma investigação de meses através de testemunhos de 130 pessoas vítimas de abusos sexuais na infância pelo padre John J. Geoghan. Uma reportagem que provou que durante três décadas alguns bispos e três cardeais sabiam do sucedido e não o impediram ou tornaram público. Na sequência da reportagem foi criada uma linha de apoio a vítimas de muitos outros casos de abuso sexual a menores por padres. O Caso Spotlight acompanha todo o processo de investigação jornalística que deu voz às centenas de vítimas. Demorou anos a ter luz verde de Hollywood para ser feito.

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CINEMA FACTUAL
É muito raro Hollywood contar uma história de investigação jornalística com um respeito total pelos factos verídicos. O Caso Spotlight não tem avanços narrativos temporais para economia narrativa nem inventa personagens para apimentar o dramatismo da história. Tudo é real. Por exemplo, os ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001 adiaram durante meses a publicação da história que denunciava o encobrimento da Igreja Católica no caso do padre pedófilo John J. Geoghan, que durante trinta décadas continuou a molestar menores com o conhecimento da diocese. No filme, vemos esse interregno e a frustração dos jornalistas pela espera da publicação da reportagem.