A pintora, a filha e as histórias delas

Uma entrevista a Paula Rego é tudo o que um jornalista quer. A oportunidade de decifrar a mulher desconcertante que fala como uma criança, pinta como um génio e parece não conhecer filtros. O lançamento do livro Sopa de Pedra, com texto de Cas Willing e ilustrações da mãe, a pintora portuguesa mais (re)conhecida em todo o mundo, em outubro passado, era o pretexto ideal. A resposta foi gentil, mas perentória: entrevistas só por e-mail, a mãe e filha, e sem sessões fotográficas. Como recusar?

Paula Rego, 81 anos, sempre adorou histórias, não consegue imaginar o mundo sem elas. É por isso que o seu museu, em Cascais, se chama Casa das Histórias. Paula Rego sempre adorou histórias. A Tia Ludgera contava-lhe muitas, algumas podiam durar dias e dias, como uma série. «Todas as crianças gostam que lhes contem histórias, não é?», pergunta a pintora. Sim. «Tudo são histórias. É através delas que descobrimos o mundo e quem somos. As portuguesas são as melhores porque nos fazem perceber o que é ser português. As antigas mostram a natureza humana tal qual ela é. Não foram alteradas pelo sentimentalismo. Estão cheias de crueldade impensada e de atos de bondade. Detestaria que perdêssemos o contacto com as nossas histórias», diz Paula Rego.

Por isso, pinta-as. Pintou-as a vida toda, seguindo talvez o conselho do marido e mentor, o pintor inglês Victor Willing (1928-1988), que, como contou recentemente ao The Guardian, lhe dizia «lê um livro e “ilustra-o”».

Sopa de Pedra (ed. Porto Editora, 2015) foi isso e o seu contrário. Paula tinha um conjunto de desenhos que queria que ficassem juntos. Pertenciam uns aos outros. Teve-os guardados por algum tempo. Um editor e amigo, Stephen Stuart Smith, queria fazer um livro, mas a pintora precisava de um texto e perguntou à filha se o fazia. Cas Willing, relutante no início, acabou por ceder à persuasão materna.

«A Paula disse que o tema era a história da sopa de pedra», diz Cas. «Com uma história tão conhecida pensámos que poderíamos encontrar uma versão antiga que pudesse ser usada. Mas era muito difícil encaixar os desenhos em alguma coisa que tivesse que ver com versões mais tradicionais. Acabei por dizer que ia tentar ver o que conseguia inventar.»

«Disse que ela podia escrever a história que quisesse. Era com ela. Dei-lhe o portefólio e levou os desenhos», diz a mãe.

Levou-os para casa «para poder passar algum tempo com eles». «Acho que eram dez… talvez fossem menos. Apesar de a Paula dizer que eram baseados na história da sopa de pedra, isso não era óbvio. Havia uma rapariga a mendigar e a mesma rapariga com uma panela, mas também havia macacos com asas e um homem doente e um casal zangado. Espalhei-os no chão e tratei-os como um storyboard para um filme [Cas Willing é argumentista]. Ordenei-os e reordenei-os, tentei várias sequências até chegar a qualquer coisa que sentisse que tinha um princípio, um meio e um fim. Quando isso aconteceu, escrevi a história. Noutras circunstâncias ou estado de espírito talvez tivesse escrito uma coisa diferente. Estava consciente de estar a pegar em pedaços da nossa história comum. O pai com as pernas partidas. A apanha do mexilhão. A vida da aldeia portuguesa. Embora seja o “truque” da história tradicional que dá a estrutura, espero que exista também uma jornada emocional.»

Quando acabou, havia vazios, por isso pediu à mãe que os ilustrasse. Decidiram que partes precisavam de ilustração, Paula Rego fez mais desenhos – a rapariga em desespero, a apanha do mexilhão, mais alguns na aldeia – a história foi ajustada e vitória, vitória, acabou-se a história. «Foi um processo dinâmico, com muita colaboração entre nós. A Paula não é de todo uma ilustradora. Ela usa as histórias dos outros para pintar a sua própria vida. A única forma de garantir que as imagens se relacionam com a história é escrevê-la depois. Pode dizer que eu fui a ilustradora e ela escreveu as imagens. Fui guiada por ela», diz Cas. «Resultou», diz a mãe. «Sim, e até me diverti a fazê-lo», responde a filha.

Nesta nova Sopa de Pedra, a rapariga substitui o frade, conquista a aldeia e até cria novas receitas, não parte à procura de outros a quem enganar. Mais uma vez, o trabalho de Paula Rego pinta-se do ponto de vista feminino. Não é que ela não goste de padres, não tem nada contra eles, até acredita em Deus e reza a Nossa Senhora e a todos os santos, mas é mulher e é a partir dessa condição que olha o mundo.

«Diferentes países têm diferentes versões desta história que não envolvem um padre. Por que não uma rapariga?», questiona a pintora. Claro que a rapariga podia ter continuado a viajar e a ganhar a vida enganando estranhos para lhe darem comida, mas essa seria uma vida triste, diz Cas. «Desta forma, ela dá-lhes alguma coisa em troca. Ganha o seu sustento e tem um sítio para ficar. Todos beneficiam. É um final (mais) feliz.» Nem Cas nem Paula pensaram numa moral para a história, mas, uma vez que o pai dá três dons à rapariga – diz-lhe que ela é forte, que é bonita e que é esperta; que da mãe herda o cesto, o vestido e as receitas; e que com a sua própria resiliência transforma a herança numa vida boa, a moral talvez seja que «não há nenhum príncipe para a salvar, por isso tem de o fazer sozinha», diz Cas. «Tem de se esforçar para ser boa em alguma coisa e sobreviver. É talvez mais acertado não ficar à espera do príncipe.»

ENTRE INGLATERRA E PORTUGAL
Paula Rego (1935) cresceu entre a Ericeira e o Estoril, um pai engenheiro e uma mãe que pintava. Em 1952, partiu para Londres, para estudar na Slade School of Fine Art, onde conheceu o (ainda estudante) Victor Willing, pintor, por quem se apaixonou e com quem viria a casar e ter três filhos: Caroline, Victoria e Nick. Cas Willing é a mais velha, a que a coelha trazia no ventre quando contou aos pais que estava grávida, no quadro em que Paula Rego representa esse momento da sua vida. Os primeiros oito anos foram passados em Portugal. O português foi a sua primeira língua. Cresceu nas mesmas casas e com as mesmas pessoas que a mãe. Até à adolescência dos filhos, Paula e o marido viviam entre Inglaterra e Portugal. Em 1976, mudaram-se definitivamente para a capital inglesa. É lá que Paula tem o seu estúdio: «Tem umas claraboias novas maravilhosas. É o lugar onde me sinto melhor e por alguma razão o lugar para onde levo Portugal. A distância ajuda-me a recordar.»

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«UMA VEZ PINTEI A MINHA MÃE COMO UM REPOLHO. ELA DISSE QUE A TINHA FEITO PARECER MAIS NOVA.»

Para a Paula o pai terá tido mais influência do que a mãe. Porquê?
PAULA: Eu gostava mais do meu pai… Ele protegia-me. Mostrou-me o livro com ilustrações do Inferno de Dante, de Gustave Dorre. Levou-me a interessar-me por ópera. Disse-me para ir para Inglaterra e seguir os meus sonhos. «Vai», disse ele. «Isto não é lugar para uma mulher». Era uma pessoa querida, amorosa, divertida, mas também depressiva. Toda a gente gostava dele. Até as enfermeiras no hospital choraram quando ele morreu. A relação com a minha mãe era mais complicada. Os meus pais deixaram-me um ano entregue aos cuidados de parentes quando eu tinha 18 meses. Quando voltaram não sabia quem era a minha mãe, mas sabia que não gostava muito dela. Mas era uma mulher com muito bom gosto. Adorava ir às compras com ela. Falávamos muito sobre roupa. Ela também era pintora.
CAS: Mas ela tinha muito orgulho em ti. E era muito sofisticada. Ela percebia o teu trabalho e nunca tentou desanimar-te. Não a pintaste uma vez como um repolho?
PAULA: Sim, um repolho a chorar. E quando lhe disse ela ficou satisfeita. Disse que a tinha feito parecer mais nova.

É para o seu pai que pinta, Paula?
PAULA: Não. Eu pinto para mim.
CAS: Também pintaste coisas para lhes dar.
PAULA: Sim, se eles iam sair deixava-lhes um desenho na almofada para que eles vissem quando voltassem.
CAS: Como uma magia? Para fazê-los voltar?
PAULA: Como uma recompensa.
CAS: Estavas a treiná-los para voltarem.
PAULA: Sim.

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«QUANDO ESTOU A TRABALHAR, ESQUEÇO O MEDO… OU PINTO-O.»

Fala muito do medo. Tem medo de quê?
PAULA: A minha mãe costumava dizer que eu tinha medo de tudo, até das moscas. Tudo me assustava. Os meus pais compraram-me um cachorro para me fazer companhia, mas tinha tanto medo que não queria tocar-lhe. Ele acabou por atirar-se da janela e suicidar-se, mas acho que não foi culpa minha. Estava constantemente a ser raptado e resgatado. Ainda estava mais assustado do que eu. Eu durmo com a luz acesa porque tenho medo do escuro, não gosto de aranhas, detesto estar sozinha e ainda tenho dias preenchidos de terror. Medo da morte e do diabo. Eu acredito no diabo. Ele entrou uma vez no meu quarto quando eu era pequena.
CAS: Pensava que tinha sido a morte. Aquela morte que ficou especada à porta.
PAULA: É difícil ver a diferença. Foi tão aterrador.
CAS: Mas não deixas que o medo te paralise. Continuas em frente.
PAULA: Ir para o estúdio ajuda. Quando estou a trabalhar esqueço o medo… ou pinto-o.

E a Cas tem medo de quê?
CAS: Não tenho medo do escuro nem de aranhas. Não vivo aterrorizada, felizmente.

A sua mãe contava-lhe muitas histórias em criança?
CAS: A mãe contava-nos histórias. Dependia de quanto tinha para beber. Às vezes lia-nos poemas do Edgar Alan Poe. Sempre adorou assustar as crianças. Mas o meu avô era o pior. Era um homem amoroso, mas todas as noites nos contava a história do Papão e eu ficava acordada horas, deitada, à espera que o Papão viesse e me pusesse no seu saco. Penso que foi a última vez que senti verdadeiro medo. Se calhar vacinou-me. A minha avó também me contava histórias. De manhã, quando acordava, trepava para a cama dos meus avós e ela contava-me a história da lagartixa. Todos os dias, uma aventura diferente com lagartos que vivam nos muros do jardim. Quem me dera lembrar-me delas… Eram muito divertidas.

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«A MINHA MÃE ERA A MAIS “SOSSEGADA”. OU ESTAVA A TRABALHAR NO ESTÚDIO OU A DANÇAR NO TERRAÇO.»

Em que sentido ser filha de Paula Rego determinou o seu percurso?
CAS: É difícil dizer, não tenho outra mãe. Crescemos numa casa enorme com os nossos avós e as criadas. Havia muitas personalidades fortes. A minha avó era pequenina, mas eu tinha a impressão que ela podia ganhar um combate com o Mike Tyson só com um raspanete. A minha mãe era a mais «sossegada» de todos e ou estava a trabalhar no estúdio ou a dançar no terraço. Os meus pais estavam sempre a falar de arte e de artistas, aliás, o meu pai falava e a minha mãe ouvia. Éramos uma família de artistas. Todos nós. O meu irmão e a minha irmã também, mas escolheram áreas diferentes. Nenhum de nós é pintor. Penso que isso teria sido difícil. Não sou como a minha mãe, ela é única, mas talvez partilhemos o mesmo sentido de humor.

A Cas formou-se em Artes, era impossível fugir-lhes?
CAS: O meu pai tinha esperança que os filhos fizessem alguma coisa útil, em vez disso. Alguma coisa académica, como ler os clássicos na universidade de Oxford ou uma profissão que rendesse dinheiro. Ele sabia que a arte significava uma vida de pobreza e queria que fôssemos capazes de nos sustentar. Sobrevivemos graças à generosidade do meu avô, que nos sustentou até à sua morte. Infelizmente, nós crianças éramos tão «tontos» como o meu pai receava e tivemos que ir para artes, desse por onde desse. Foi a única coisa que gostei de fazer. Era aquilo em que éramos bons.

E escolheu como trabalho contar histórias. Em que se inspira?
CAS: Quando deixei a escola de arte, trabalhei muitos anos a fazer monstros para filmes. Só comecei a escrever mais tarde. Ter trabalho inspira-me.

O que pensa de reis e rainhas, príncipes e princesas?
PAULA: Gosto muito. As histórias populares estão cheias deles. Têm poder e carisma. Não tenho nada contra casar com um príncipe, se se conseguir encontrar um. Embora possa vir a descobrir que ele se transforma num monstro.

Era rebelde e questionadora em criança?
PAULA: Eu era boa e obediente. Não respondia aos meus pais.
CAS: Mas fazias coisas às escondidas, não fazias?
PAULA: Sempre. Mas eles não sabiam. Até eu aparecer grávida.
CAS: Mas quando eras criança, não fazias asneiras? Não cortaste todas as franjas das cortinas da casa da tia tia-avó?
PAULA: Sim, mas eu não sabia que era uma asneira. Só gostava de cortar. Também cortei os dedos de uma boneca especial. A sensação foi deliciosa. Quem me dera poder fazê-lo agora.
CAS: Eu era difícil? Desafiadora?
PAULA: Tu? Não. Eras uma boa menina. A Vicky era um bocadinho marota.

[Entrevista publicada na edição em papel da Notícias Magazine, em janeiro de 2016]