A ousadia da dissonância

Notícias Magazine

Sim, achava que um dia seria possível concretizar a utopia. Aquilo de acreditar que o mundo pode mudar definitivamente para melhor, sem olhar para trás. Coisas de adolescente com rastas.

Houve uma altura em que acreditei sem reservas que se se mostrasse a verdade às pessoas, elas iriam aceitá-la, o mundo tornar-se-ia mais justo, o amor ao próximo venceria. Isso é discurso de miss, miúda. Paz na Terra e fim da fome no mundo.

Tola. Para já, por achar que se pode chegar à verdade. Se é que há só uma verdade para cada coisa. Aquilo do mito da caverna e de só conseguirmos vislumbrar o vulto da verdade e nunca a sua forma concreta… Temo que seja assim, como Platão nos conta.

Depois, por acreditar que perante a possibilidade de saber a verdade, todos nós quereríamos de facto conhecê-la. Ou que, conhecendo-a, iríamos mudar as regras do jogo.

No filme Matrix, quando Neo percebe que não terá de lutar apenas contra o agente Smith, mas que todos os que estão na Matrix podem tornar-se agentes, responsáveis por esmagar qualquer voz dissonante que ponha em causa o sistema que os aprisiona e que, ao mesmo tempo, lhes dá a ilusão de uma vida livre e confortável, pensei que aqui nesta matriz em que vivemos, quem questiona as regras acaba geralmente por se ver confrontado com a violenta reacção dos que as seguem cegamente. E pensei outra vez para comigo: «Pronto, vou cortar a rasta.»

Depois, veio o Facebook, o Twitter e quejandos e a confirmação de que o nosso triste fado é repetir os mesmos erros até à exaustão. Aprisionamo-nos voluntariamente em clubes disto e daquilo, círculos restritos de pessoas que pensam do mesmo modo e se regem pelo mesmo conjunto de regras, sem as questionar. E eis que, consequentemente, deixamos de saber discutir. Discutir, argumentar, debater. Ideias, argumentos, crenças. Essas coisas que apenas servem para criar inimigos nos dias que correm.

Nunca perceberei por que razão alguém não concordar com o nosso ponto de vista seja motivo para que se lhe lance juras de ódio ou para que a excluamos do nosso círculo de opiniões.

As saudades que tenho da minha rasta. E da minha inocência. Perdi-a por aí, mas conservei aquela teimosia a que se pode também chamar estupidez.

Não, não acho que tenhamos hipóteses de lá chegar. E, no entanto, ninguém me conseguirá demover de o tentar.

[Publicado originalmente na edição de 1 de maio de 2016]