A minha mãe antes de eu a conhecer

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Este é o título de uma rubrica com a qual o jornal britânicoThe Guardian assinalou o Dia da Mãe – festejado naquele país no domingo passado. Uma fotografia antiga de uma mulher, um texto escrito por um filho. Comecei a ler esperando histórias comoventes de ternura e respeito extremados pela exposição pública. E, sim, são comoventes, mas nem todas estão cheias de elogios nem saudades.

O escritor Julian Barnes, por exemplo, não reconhece na imagem a mãe que teve, com a qual acabou por viver um desentendimento feito de uma longa discussão silenciosa. A mulher na fotografia fá-lo pensar numa jovem «com diferentes possibilidades de vida diante dela», alguém «que poderia não ter sido minha mãe, alguém que não tivesse acabado por exasperar-me». A foto mostra uma jovem de cigarro na mão, elegante e bonita – ainda que nos traços dela esteja visível o rosto do filho escritor. O mesmo não pode dizer-se da mãe de outra escritora, Jeanette Winterson, que ao ver a fotografia da mãe adotiva sente tristeza, medo, desilusão, compaixão, arrependimento. Mas não são de todo parecidas, a mãe numa expressão de secura e rigidez, a filha expansiva de olhos rasgados e cabelo despenteado.

Outra filha adotada, Jackie Kay, tem uma reação oposta à de Jeanette. A mãe Helen, uma escocesa atlética, aparece com botas robustas, preparada para subiras montanhas geladas dos Alpes do Sul, na Nova Zelândia. E a filha realça «o rosto a olhar de frente o futuro, aberta, linda, confiante». E comovente, sim, ela resume a ligação das duas: «Agora, aos 85 anos, ela chama-me a sua segunda pele, o coração dos corações, o seu outro eu. Se não nos tivéssemos encontrado, eu tinha acabado por descobrir-te, diz ela.» Outros depoimentos são ternos como este, mais ou menos íntimos, construídos com amor.

Fiquei a pensar no que poderia eu escrever perante uma fotografia da minha mãe tirada antes de eu nascer. Tenho esse retrato diante de mim, no lugar onde escrevo: uma beleza serena, talvez toldada por uma vaga tristeza de quem teve a juventude cortada pela morte do pai. A verdade é que nunca pensei muito nisso, e que quando revejo as imagens em que ela está mascarada de minhota, ou na praia da Nazaré ou da Figueira a namorar com o meu pai, ou à porta da igreja de Badajoz onde se casaram, porque não sendo ainda oficial do Exército ele não podia casar-se em Portugal, o que penso hoje não traz dúvidas nem mágoas. De Julian Barnes tomo apenas a frase – «com diferentes possibilidades de vida diante dela» – e lembro-me de a ouvir confessar a pena de ter interrompido os estudos, pois gostaria de ter estudado Química. Escrevo no dia 8 de março e penso nos caminhos que se abriram – às mulheres e aos homens também – nos últimos 100 anos, e por isso a frase do autor de O Papagaio de Flaubert bate mais forte, sem mágoas a não ser a de imaginar como poderia ter sido mais feliz.

Mas ao vê-la não me ocorre no imediato a ideia de desencontros, que naturalmente tivemos, de incompreensões que a idade adulta me esclareceu, pequenos equívocos sem importância como diria Tabucchi. E volto à estranheza de ler as frases cruas daqueles escritores britânicos, anglo-saxónicos da cabeça aos pés. Ponho-me a imaginar que os ares do Sul da Europa não nos deixam ficar nesse lugar de aspereza, crítica e rancor. Preferimos as saudades daquele arroz-doce que, de entre as 300 maneiras de fazê-lo, é o único delicioso. Quero eu dizer: sempre falaríamos do lado doce.

[Publicado originalmente na edição de 13 de março de 2016]