
1 Ao contrário de budistas, estoicos, taoistas, epicuristas e de Nietzsche, eu não quero viver o presente e a realidade, conformar-me e moldar-me, como se tudo fosse bom, o melhor dos mundos possíveis de Leibniz. Gostava de não sucumbir ao conforto, ao adormecimento das nossas convicções, gostava que o mundo mudasse onde é mais infeto. Quero enfurecer-me com o fim da luz (rage against the dying of the light), quero revoltar-me. A ideia de amor fati é, por vezes, repelente. O elogio taoista da água, que desce sempre, procura os lugares mais baixos, que não enfrenta a dureza da rocha, é um crime, é aceitar a injustiça, é cruzar os braços, permitir o Holocausto, o genocídio do Ruanda, achar que Pol Pot faz parte da beleza do mundo e que esta só pode ser, em toda a sua dimensão, aceitável e, mais do que isso, venerável. Quando anulamos o idealismo, anulamos a evolução, o crescimento social e pessoal, para simplesmente aceitar com gratidão tudo o que nos é dado. Talvez haja uma maior felicidade inerente a essa atitude, mas eu não quero ser feliz assim. Entre Estaline e a infelicidade, escolho a infelicidade. Ou o desassossego ou a inquietude.
Não quero ser cúmplice da realidade.
A realidade tem rodas quadradas. Foram o sonho e a ficção e as ideias que as fizeram redondas.
2 Slawomir Mrozek tem um conto de que gosto muito, pela ironia. Chama-se A Revolução e fala-nos de um homem que decide mudar alguns móveis de sítio, começando por um armário e por uma cama. Segue-se uma mesa, por causa da sua posição central, conservadora e imutável. Depois, mais aventureiro ou vanguardista, vai mudando outros móveis de uma forma mais radical, para acabar aborrecido com o resultado: no final, volta então a pôr os móveis no seu lugar original e quando sente novamente o tédio, recorda os tempos em que foi revolucionário e os mudava de sítio. É uma excelente parábola da classe média, do conformismo e da resignação. Neste momento, os que verdadeiramente andam a mudar o mundo em vez de móveis da sala, que estão descontentes e querem moldar a sociedade àquilo que acham certo, são perigosos. E nós estamos a deixá-los.
Achamos que este é o melhor dos mundos, estamos apenas armados com sofás e comandos de televisão e, se for preciso agir, temos a caixa de comentários do Facebook. É a revolução descrita por Slawomir Mrozek.
Estamos a deixá-los.
Somos meros espectadores.
Deixamos que se ergam muros na Europa. Permitimos a espoliação de refugiados. O problema é que já vimos isto acontecer, mas na altura usavam-se bigodes à Charlot.
[Publicado originalmente na edição de 3 de janeiro de 2016]