A crónica que não precisava de ser escrita

Notícias Magazine

Há mais mulheres na política, na vida pública. Isso é tão normal que nem devia ser preciso referir. Mas ainda é.

Sentem o ar mais fresco? Não? Algo que mudou por estas bandas. Na política, sim, na vida pública. Há mulheres. Há mais mulheres no governo, sucedem‑se as nomeações no feminino e temos duas mulheres que se candidataram à Presidência. E não são três porque as assinaturas da candidata Graça Castanho foram levadas numa tempestade açoriana.

Parte de mim morde‑se ao escrever esta crónica. Escrevê‑la é uma espécie de complexo de duplo sentido. O facto de ela existir nega o seu conteúdo. O que estou a dizer contradiz‑se por o dizer. Sim, é isso mesmo. Eu ter de acentuar o facto de haver uma onda feminina a varrer o país significa que esta é uma situação invulgar. E o que todos devemos almejar é que isto seja a regra e não a exceção. Que, repondo a ordem natural das coisas, metade do mundo não fique relegado a muito menos de metade dele. É, no entanto, melhor que assim seja do que não seja nada. Que seja no ano de 2016 – já entradotes no século xxi – do que tenhamos que aguardar mais.

Este meu lado antifeminista sempre foi, na sua forma simples, a mais radical forma de feminismo. Adolescente e pós-adolescente, na faculdade rodeada de alunas, acabada de entrar no mercado de trabalho e nos primeiros anos de profissão, em redações sobretudo de mulheres, nesses tempos iniciais e iniciáticos eu achava que tudo só podia ser muito simples: a igualdade era uma evidência. Daí não haver necessidade de quotas, nem de leis, nem de pressões, nem tão-pouco de lóbis. O que era isso tudo perante a ordem natural das coisas?

Afinal, a vida mostrou‑me que não era bem assim. Os exemplos sucediam‑se de gente que ia ficando para trás, por causa do tempo que perdiam a apanhar as meias do marido do chão do quarto para lavar, ou porque havia alguém que, sendo homem, lhes passava sempre, sempre à frente. E tornei‑me menos feminista, mas mais flexível. A aceitar que talvez fossem precisas leis. Que nem tudo estaria bem apenas pelo devir do mundo. E que talvez fosse mesmo preciso lutar pela reposição simples da ordem natural das coisas – aos meus olhos, ainda de algum modo, ingénuos.

Ainda hoje é preciso. Não são raras as espreitadelas – involuntárias, ou porque sou ombro amigo ou porque há um desabafo que amparo – que dou para a vida de tanta gente que conheço e que julgava inatacável e, afinal, descubro os exemplos mais puros do machismo mais troglodita, ali, à mão de semear. Mulheres que sofrem pressões para não trabalharem tanto. Mulheres cujos maridos não percebem que não há nada no mundo que lhes dê a elas a responsabilidade de tratar da casa, da comida e da família e dos filhos, simplesmente porque elas trabalham tanto como eles fora de casa.

É por isso que é importante que as mulheres do futuro vejam Maria de Belém e Marisa Matias nesta campanha. E, sobretudo, nos debates. É aí que é mais pública a igualdade. A baterem‑se com os outros candidatos. Sem nenhuma condescendência, sem que lhes façam perguntas relacionadas com o seu sexo – oh, e como isso é raro – a debater os temas da nação. Estas mulheres são aquilo com que as meninas e jovens irão crescer. Nesse sentido, também nesse sentido, esta crónica é uma antítese de si própria. E nem precisava de ser escrita.

[Publicado originalmente na edição de 10 de janeiro de 2016]