2016, Space Oddity

Notícias Magazine

Scott Kelly estava preocupado, na véspera de Natal. As plantas que ia vendo crescer estavam a chorar por água, murchas e tristes. Pediu instruções e responderam-lhe que só podia regá-las no dia 27. «Mas eu estou a ver que elas precisam de água, assim como sei ver quando a minha relva precisa de rega.» Os chefes avaliaram a situação e deram-lhe o presente de Natal que pedia: trata tu das plantas, vá lá.

O homem de New Jersey regou-as e viu-as renascer e crescer, e no início desta semana a fotografia da primeira flor correu o mundo. Scott tinha conseguido fazer florir uma zínia a uma distância dos chefes que é mais ou menos a que separa Lisboa de Bragança (em linha reta), mas nuns 400 quilómetros medidos no sentido vertical, isto é, no espaço.

O jardineiro é um dos moradores da Estação Espacial Internacional, aquela que anda há mais de 15 anos à volta da Terra com sucessivas tripulações de diferentes nacionalidades, num projeto conjunto das agências espaciais dos Estados Unidos, da Rússia, da Europa, do Japão e do Canadá. No site da NASA, podemos seguir não apenas o crescimento da zínia mas também as experiências científicas e o quotidiano dos seis ocupantes da estação. Como aquelas anedotas: o que fazem dois americanos, um russo, dois ucranianos e um inglês num espaço fechado? Fazem muitas coisas, incluindo preocupar-se com as folhas murchas das zínias. No verão passado, o mesmo Scott, comandante da estação, mostrou-se ao mundo a comer alface, ao lado de Kjell Lindgren, nascido em Taiwan, regressado à Terra no mês passado. A salada tinha sido cultivada naquele ambiente de microgravidade e com luz artificial que não é ficção, é a vida real.

Percebo bem as inquietações natalícias de Scott. Vivo num apartamento mas tenho varanda e uma zona na casa que parece ter sido inventada para ter plantas a crescer alegremente. Está em botão mais um ramo da orquídea que miraculosamente sobrevive a largos anos e duas mudanças de casa. A camélia que comprei em dezembro está encantada com a chuva, ao lado de um craveiro que não vive os melhores dias. As teimosíssimas sardinheiras aguentam tudo. E as violetas vão acompanhando o crescimento das ervas aromáticas que me trazem cheiros e sabores frescos. Cada flor é uma novidade absoluta, não sei explicar o entusiasmo de ver a vida a despontar no vaso onde coloquei bolbos de lírios, ali à espreita em rebentos verdinhos.

Por isso compreendo que ver uma flor aberta numa estação espacial é tão sensacional como perceber em que condições isso aconteceu para continuar a investigação que vai proporcionar aos astronautas alimentos frescos ali nascidos. «O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo», escreveu Álvaro de Campos, e tinha razão.

A Estação Espacial Internacional completa hoje 6274 dias em órbita e já albergou mais de duzentos homens e mulheres com formações, nacionalidades e humores diferentes, e alguns deles fizeram mais de uma missão – é o caso de Scott Kelly. Têm famílias e amigos «cá em baixo», comunicam com eles como quem fala de um país para outro. Esteve lá em 2013 Chris Hadfield, o primeiro canadiano que andou no espaço, e que num belo dia de órbita, de guitarra nas mãos, cantou Space Oddity, de David Bowie, como se pode ver no YouTube. Ele que twittou no dia 11, «Ashes to ashes, dust to stardust, Your brilliance inspired us all. Goodbye Starman.» Andava nesse dia Scott Field preocupado com a zínia, já sem ordens teóricas a chegar da Terra, livre do ground control que não sabia a falta que a água estava a fazer.

[Publicado originalmente na edição de 24 de janeiro de 2016]