O Pequeno Dicionário Caluanda

Notícias Magazine

Esta semana, fui (na verdade, irei, escrevo antes) apresentar um livro. O autor e editor do livro, Manuel S. Fonseca, disse-me (vai dizer) “obrigado”, porque ele é muito bem-educado. A minha resposta: “Tem juízo.”

Há alguns anos, lancei um livro no Funchal, Os Madeirenses Errantes, sobre a diáspora de protestantes ilhéus. A meados do século xix, eles foram desapossados das suas casas e quintas, expulsos da ilha, fugiram pelo mundo fora… O lançamento do livro foi no Funchal e Alberto João Jardim fez questão de estar presente. Quando eu comecei a falar, disse: “Não agradeço a presença do presidente do Governo Regional…” Na sala caiu o silêncio dos que olham um iconoclasta. Prossegui: “Alberto João Jardim está aqui a cumprir uma obrigação para com os seus conterrâneos e isso não se agradece.” Ao meu lado, Jardim, inteligente e político, meneava a cabeça, concordando.

O livro desta semana é o Pequeno Dicionário Caluanda, 1001 palavras do falar da cidade de Manuel Fonseca e também minha, Luanda. Como agradecer-me por eu estar a cumprir a obrigação por ter tido, até de ouvido, uma infância tão fascinante? A minha evidente obrigação era um prazer. Fui feliz, sabem-no todos os que me conhecem. Cheiros (pitanga) e sabores que ficam porque são bons (azeite de dendém em farinha de mandioca) ou são bons porque descobertos na infância (múcua). Fisgas para apanhar cucos que se ouviam, mas que sempre desconseguíamos apanhar porque nunca se viam. Trumunos (lá está, um dos 1001 verbetes do livro: jogo de futebol de pé descalço) e bassulas (outro: luta de miúdos na areia branca e suave do bungo)…

E conversas sob as copas das mangueiras. Foi, aí, que me foram entranhando expressões, de aiué! a xê!, e o único adeus que vale um ciao: caté! “Caté, meu irmão!”, era como me despediria do meu amigo cowboy, se alguma vez eu fumasse (Marlboro, claro). Ah, esquecia-me da melhor, que só gasto quando estou ao lado de quem a merece, um luandense dos tempos do caparandanda, que me deita um olhar derreado de memórias quando me sai: “Pópilas!”

Ora, este livrinho do falar caluanda (é como nos chamamos, aos nativos que somos) traz termos que foram introduzidos numa língua que só aceitava aceitar, se pudesse dar. São palavras antigas mas não passadas, porque da mistura que as originou aconteceu uma invenção abençoada: o luandês, o mais imaginativo português. Hoje, como são pobres e enfatuados os telejornais oficiais comparados com o falar da rua, até quando este irrompe pelos programas populares de rádio e televisão luandenses. Ali, quanto mais popular, melhor (porque com mais prazer) se fala.

Como conta, sem contar, o Pequeno Dicionário Caluanda, houve um Nzambi, se quiserem um deus, que decidiu o falar caluanda. Quando se pôs a fazer a terra e os rios, deixou o Quanza arrastar o que havia de mais profundo e africano. Chegado ao mar, a oferta virou à direita porque a corrente fria de Benguela, subindo, a empurrou. Os sedimentos fizeram a primeira restinga, a ilha do Mussulo, e, logo depois, a que se chamaria ilha do Cabo, que envolveu a baía de Luanda onde a língua portuguesa de que estou a falar nasceu. Reparem nos cabouqueiros, dois: o telúrico (o Quanza) e o que por lá passava (a corrente atlântica). A minha cidade, autêntica e cosmopolita.

[Publicado originalmente na edição de 27 de março de 2016]