Voando por cima do meu bairro

Notícias Magazine

Escrevem-me: «Nat King Cole viveu mesmo em Luanda?!» A todos, incluindo uma televisão luandense que me telefonou a pedir pormenores sobre a moradia do crooner no Largo de Amba­ca, emendo: eu não disse que Nat King Cole viveu em Luanda. Eu disse: no bairro de São Paulo. O meu bairro foi sempre especial, meio triângulo das Bermudas, meio ilha da Páscoa e meio ele pró­prio. Três metades? Exato, é isso mesmo que eu queria dizer. No meu bairro sempre aconteceram coisas extraordinárias.

Desde logo, a Joana Maluca. Ponham o nome na internet e vejam crescer uma lenda. Negra, maluca e desbocada, quase na­da sabem dizer dela, supõem-lhe origens e não se sabe se chegou à independência. Certo era ser temida, por causa das imprecações que lançava em quimbundo misturado com vinho. Nem todos percebiam, mas a cruz que ela traçava no chão vermelho com um cajado irado aterrorizava até os brancos. Nós, os brancos da terra, sabemos que não estamos vacinados contra feitiços.

Nas últimas décadas coloniais, a Joana Maluca ia às pro­cissões do Corpo de Deus. A festa era na Baixa, de ruas há muito asfaltadas, e o meu bairro ficava nos confins ainda há pouco co­nhecidos por musseque Cayatte. A nossa igreja era a da Missão, o que fazia de todos nós um pouco aborígenes. À mais bela avenida da Baixa, marginando a baía, chamavam-lhe Paulo Dias de No­vais, o fundador da cidade (fez no mês passado 440 anos) e, hoje, o homenageado nem beco tem. Já a rua onde nasci, em São Paulo, chamava-se e chama-se Vereador Prazeres, e continuamos sem saber quem foi o vereador.

Na Baixa asfaltada, a Joana Maluca não precisava de de­senhar no chão, bastava a fama de desbocada. Na procissão, se­guia atrás do governador-geral e do arcebispo D. Moisés. A polí­cia deixava porque a minha vizinha era uma instituição intocável. Em 1977, já depois da independência, conheci uma mulata que se passeava por Luanda com uma bandeirinha portuguesa enfiada na cabeça e cartaz do Américo Tomás ao peito. E para tudo ficar claro, ela só andava em marcha atrás. Tal como a Joana Maluca era respeitada pela polícia colonial, a mulata era respeitada pela nova nação – os malucos voam por cima dos ventos da História.

Uma manhã, nos anos 50, eu brincava no meu quintal, nas traseiras da Vereador Prazeres, quando a Joana Maluca se sentou à sombra da mulembeira. Garotito, eu vestia um quimono e ela estava maravilhada. Pôs-se a falar em bom português: «Sabes que o meu pai é japonês?» Olhos rasgados, ela tinha-os um pouco, e apesar de bem negra, eu já sabia que os mulatos tinham matizes. Contou-me que o pai dela tinha corrido a maratona olímpica, «lá na terra dos brancos», desistiu a meio e, envergonhado, fugiu: «Veio no barco com o sul-afri­cano branco que ganhou a medalha, mas desembarcou aqui, em Luanda.» Dito isso, ela foi-se embora. Nessa noite, o meu pai respon­deu-me: «Japonês, aqui? Quando cá cheguei, em 1929, havia um que dava judo no Atlético. Mas desapareceu ainda antes da guerra…»

Em 1968, em frente ao Banco de Angola, eu era mirone das filmagens de Um Italiano em Angola, do realizador Ettore Scola. Al­guém me agarrou num braço, puxou-me para as arcadas e deixei–me ir, era a Joana Maluca. Não quis um vexame, preferi não ver o Alberto Sordi. Da saia esfarrapada, ela tirou um Diário de Luan­da seboso, passou-o a ferro com a palma da mão e apontou-me a notícia. Mais de meio século depois, tinham encontrado o japonês que desaparecera na maratona dos JO, em 1912. A televisão sueca levou Shizo Kanakuri a Estocolmo e fê-lo acabar a prova 54 anos, 8 meses, 6 dias, 5 horas, 32 minutos e 20 segundos depois… O re­corde mais longo da maratona, uma história maluca. A minha vi­zinha tinha os olhos cravados em mim: «Não te disse?»

Há dias, voltei a ver o Alberto Sordi, num jeep, a ir do deserto do Namibe às quedas do Duque de Bragança, 750 quilómetros, em dois minutos. Está no YouTube, isto para não dizerem que só acontece no meu bairro.

[Publicado originalmente na edição de 8 de março de 2015]