Vestidos e cérebros em conflito na passadeira vermelha

Notícias Magazine

Falava eu dos sapatos altos das ministras portuguesas foto­grafadas no Terreiro do Paço, na semana passada. Para quem não leu ou não se lembra, as quatro ministras que ocupam todos os mi­nistérios da Praça do Comércio foram fotografadas juntas, cada uma com o salto maior do que a do lado. Que raio de feminista se pode ser em cima da tortura de dez centímetros? – perguntava eu.

Este questionamento – com as suas declinações – é ful­cral no feminismo pós-feminista que vivemos hoje. Entre quei­mar soutiens e pintar os lábios de vermelho, em que ficamos? Po­demos combinar um cérebro que funciona com uma cintura de vespa? A liderança de um ministério com uma saia travada? Co­mo equilibrar a assertividade e o charme? E para que precisamos de charme, já agora? Não está o mundo cheio de homens que nos lançam o deles enquanto só querem mandar em nós?

Estava eu preocupada com os saltos das ministras quan­do estalou a mesma polémica em Hollywood. Contextualizando: nos últimos anos, as passadeiras vermelhas dos festivais de cine­ma, televisão e música tornaram-se, não só lugares onde o talen­to se vai mostrar, como uma montra de moda. Estilistas e stylists digladiam-se para vestir as maiores estrelas. Foi criada uma in­dústria de assessores de imagem que criam e recriam a face públi­ca daqueles para quem trabalham – nomeadamente escolhem os trapinhos com que os seus clientes passearão na passadeira ver­melha dos Óscares e outros festivais.

Conclusão: todas as atenções começaram a virar-se para o que elas vestem e não para o que elas fazem – ou fizeram – que se­ja digno de um prémio. Artista que queira dar nas vistas, é esco­lher um vestido bonito, diferente. Assim foi, por exemplo, com Lu­pita Nyong’o. A atriz de origem queniana foi mais falada pelo seu vaporoso vestido Prada azul-claro do que pelo feito que foi uma atriz negra ter ganho o Óscar de Melhor Atriz Secundária, em 2013. Não foram as suas deixas em 12 Anos Escravo que a fizeram ser considerada uma das mulheres mais bonitas – e influentes – dos EUA, mas sim as roupas que a sua assessora pessoal Micaela Erlanger tem vindo a escolher para ela usar nas várias rodadas de passadeiras vermelhas que já leva.

Ora, como as estrelas de Hollywood são, talvez, o me­lhor exemplo de que uma mulher bonita também pode ser inteli­gente (e agora ficava mesmo bem aqui um emoticon a piscar o olho para os que não perceberam a ironia), elas fartaram-se de ser tra­tadas ali, na passadeira vermelha, como não são em mais lugar ne­nhum: como mulheres-objeto.

Começou então uma campanha chamada #AskHerMore, pergunta-lhe mais qualquer coisa. Liderada pela apresentadora dos Globos de Ouro e estrela cómica do Saturday Night Live, Amy Poehler, a campanha pretende levar os jornalistas de celebrida­des a serem mais ousados e profundos nas perguntas que fazem às atrizes. E insta as actrizes a não responderem a perguntas par­vas como: «Que regime usou para estar tão em forma?» Mesmo que esses interrogatórios frívolos sejam seguidos de elogios como: «Está fantástica!»

Esta vai ser uma tarefa difícil – precisamente porque foram as atrizes que entraram primeiro no jogo. Também elas querem sentir-se lindas e mesmo assim serem consideradas mais do que meros cabides de roupas bonitas à entrada das galas. As respostas às perguntas feitas no início desta crónica não são simples. Este segundo patamar do feminismo – sim, agora já somos iguais, que­remos ser diferentes – ainda está bem longe de ser alcançado.

[Publicado originalmente na edição de 22 de fevereiro de 2015]