No Natal de 1954, dois irmãos, uma mina, um assalto e um destino. Uma reportagem que nos devolve à história
Há uma teoria que nos diz que o nosso conhecimento sobre o mundo se divide entre o que sabemos que sabemos, o que achamos que sabemos, o que achamos que sabemos mas não sabemos e o que nem sabemos que não sabemos. É contra esta categoria que militam os jornais e jornalistas. A favor do desconhecimento e da descoberta. Porque só quem sabe que não sabe pode aprender.
É também nesta última categoria que se insere a história de Natal que contamos nesta edição. O Natal que a história apagou, memórias de um golpe falhado – a propósito do roubo de volfrâmio nas minas da Borralha, em dezembro de 1954. O nosso repórter Ricardo Rodrigues andou por Montalegre, pelas minas e pelas suas memórias e encontrou esta história que conta como se fosse um conto de Natal. Porque é um conto de Natal, mas baseado na mais pura realidade. E que, como todas as boas histórias jornalísticas também chamadas reportagens, conta tanto da sua própria narrativa como da história do mundo.
Tudo se passa nessa época em que o volfrâmio já não significava a riqueza que tinha significado, acabadas que estavam as guerras que o valorizavam. Daqui saiu o minério que alimentou as armas aliadas e nazis – uma pela frente, outras por trás. Em 1954 já se diluíra o negócio que transformara aquela terra pequena numa metrópole. A pobreza voltara a acossar as gentes que, já se sabe – e mais uma vez esta história ganha contornos de fábula –, depois de provar do bom não se consegue aturar facilmente o mau.
Além da ordem natural das coisas, com o negócio perturbado pelos tempos, havia também as sevícias políticas de um regime centralista, que retirara as terras a quem nelas trabalhava para as dar à exploração francesa e que punia com mão de ferro – e vigilância pidesca – qualquer tentativa de venda ilegal do minério.
Estavam neste espartilho dois irmãos que são o centro desta história. E que resolveram, então, fazer um golpe. Um golpe ilegal – um roubo – mas com cobertura moral: justificava-se para eles, que até aí tinham sido cidadãos honrados, porque tinham sido desapossados do que lhes era devido, e devido, ainda mais, a todo o povo. Assim escolheram o dia de Natal e, com a conivência dos guardas, também eles imbuídos de um outro tipo de espírito natalício, roubaram volfrâmio que hoje teria o valor de um milhão de euros. A coisa deu para o torto, a justiça impôs- se e o tacão de ferro da ditadura fez-se sentir colocando-os a ambos, mais os seus cúmplices, na cadeia por 12 anos.
São histórias destas que fazem valer a pena ser jornalista. E descobri-las, e ao seu fio, provoca a mesma sensação de satisfação que dá o conhecimento: de finalmente nos apercebermos do que não sabemos. E assim teria este caso ficado no esquecimento. As minas entretanto fecharam e o caso morreu para a história, exceto na memória de alguns homens da terra com quem o Ricardo Rodrigues se cruzou nas suas andanças em Montalegre.
Neste ano, porque as minas reabriram agora como um museu, voltou a fazer-se a Procissão de Santa Bárbara e a celebrar a vida dos mineiros, ainda que reformados. E também nesse regresso ao passado acordou esta recordação. Para nos lembrarmos de que há tanto que não podemos esquecer.
[Publicado originalmente na edição de 20 de dezembro de 2015]