Sam Mendes

Bisneto de um madeirense, protestante, que fugiu para Trinidad e Tobago no século XX, vencedor de um Óscar, à 24.ª aventura de James Bond, o realizador inglês Sam Mendes vai deixar o agente secreto mais sedutor do mundo apaixonar-se. Se Bond aparecia diferente em Skyfall, volta a surpreender em Spectre, o segundo capítulo com assinatura deste realizador. Estreia-se em Portugal na próxima quinta-feira. 007 tem agora licença para não matar.

Golden Square Garden, 17h45. James e John jogam pingue-pongue ao ar livre. 11-12, 11-13, 12-13. Cinco ou seis pessoas, de pé, assistem ao desafio e outras tantas estão sentadas nos bancos que parecem levitar sobre um manto de folhas amarelas. Típico de fim de tarde de outono no centro de Londres. Nem por isso. 22 de outubro, quinta-feira, é um dia especial. Culpa de outro James. Dentro de poucos minutos, dezenas de jornalistas de todo o mundo estarão a vê-lo em ação. «James por James, podiam entrevistar- me», diz… James, o que joga pingue-pongue. Nada feito. Não só continua a perder o jogo (12-15, 12-16), como é Bond, James Bond, a estrela da praça. O calendário marca a antestreia de Spectre, em exclusivo para a imprensa internacional. A 24.ª aventura de 007 tem hora marcada no discreto número 25, sede da Sony Pictures Europe. Não há passadeira vermelha, reservada para daí a quatro dias, no Royal Albert Hall. Os telemóveis, senhores jornalistas, ficam à porta da sala. Nada de tentações fotográficas. O filme começa dentro de momentos. James e John continuam, lá fora, pingue e pongue.

Os jornais ingleses do dia seguinte publicam as primeiras críticas sobre Spectre. Positivas, na maioria. «Quando comecei, no teatro, costumava ler as críticas, quase como uma obsessão. Lembro-me de ir até King’s Cross, onde costumavam entregar os jornais à meianoite», diz Sam Mendes. «Trabalhei numa peça chamada The Blue Room, com Nicole Kidman, em 1998, e foi tão odioso o modo como a imprensa tratou a peça que simplesmente deixei de ler. Talvez um dia, quando me reformar.» O realizador chega à hora certa para a conversa com a Notícias Magazine (ver entrevista).

Samuel Alexander Mendes, 50 anos, inglês de Reading, Berkshire, tem raízes portuguesas, mas disso não há tempo para falar, só do que o traz aqui, 007. É descendente da família Mendes, madeirense e protestante – que se refugiou em Port of Spain (Trindade, Caraíbas) no ano de 1852, depois de ter sido perseguida e expulsa do Funchal. Alfred Mendes, seu avô, foi um escritor trinidadiano famoso e moderno – mas Sam teve pouco contacto com ele, acabou por ficar a viver apenas com a mãe, judia, depois do divórcio dos pais.

O segundo capítulo 007 da autoria de Sam Mendes leva-nos da Cidade do México a Roma, das montanhas austríacas ao deserto marroquino, de Tóquio até tudo terminar em Londres. A geografia continua universal mas há mudanças evidentes. É assim agora em Spectre, foi assim em Skyfall. «As pessoas falam muito a respeito de Bond como herói, mas na verdade ele não é um herói, nunca o foi. Bond é um anti-herói, e isso é muito diferente», diz Sam Mendes. «É um homem repleto de falhas e que reconhece as suas próprias falhas, bebe e fuma demasiado, é mulherengo, mente, não obedece à autoridade, é taciturno, depressivo – por isso, para mim continua a ser extraordinário o facto de esta figura perdurar há cinquenta e tal anos.»

Não se espere que o seu James Bond beba sumos detox, que não bebe, apesar de lhe oferecerem; já apaixonar-se é outra história. «Sim, é um Bond mais sentimental, que se apaixona», confirma Daniel Craig. As Bond girls, apesar de sexy, ganham autoridade e autonomia; Q e Monneypenny têm outro protagonismo. Sam Mendes tem garantida a sua assinatura no Bond do século XXI, interpretado por Daniel Craig desde 2006 – o sexto guardião do legado de Sean Connery (1962-1971), George Lazenby (1969), Roger Moore (1973-1985,) Timothy Dalton (1987- -1989) e Pierce Brosnan (1995-2002). «Sam Mendes e Daniel Craig criaram um James Bond que tanto pode matar como ser romântico, e tem o instinto da morte, algo que o faz tão humano, como um de nós», defende Monica Bellucci, a femme fatale Lucia Sciarra.

Ao quarto filme (Casino Royale em 2006, Quantum of Solace em 2008, Skyfall em 2012 e agora Spectre), Craig conjuga o protagonismo com a coprodução. «Spectre demorou três vezes mais do que qualquer outro filme. Foram oito meses de filmagens, três de preparação e um ano de escrita», explica o ator inglês de 47 anos, para quem as «luzes e sombras» de Spectre contrastam com um Skyfall mais «negro e sinistro». «Eu e Sam Mendes puxámos um por outro no primeiro filme, eu estava nervoso, ele estava nervoso. Neste tudo está no sítio certo, entregámo-nos criativamente a fundo. Costumo dizer que não falamos durante as filmagens, rosnamos…»

A história das adaptações cinematográficas de 007 tem um protagonista – o produtor norte-americano Albert Romolo «Cubby» Broccoli (1909-1996). Hoje, quem gere a máquina é a filha, Barbara Broccoli, e o enteado Michael G. Wilson. Spectre custou cerca de 275 milhões de euros. O mais caro de sempre. Skyfall (2012) e Spectre (2015) recuperam o Bond original, das páginas do escritor Ian Fleming. Sam Mendes comanda a travessia, muito por culpa de Daniel Craig, que sugeriu o nome do realizador com quem trabalhara em Caminho para Perdição (2002). «É um grande contador de histórias. Todos os atores a quem perguntámos primeiro se queriam fazer o papel disseram logo que sim e isso tem muito que ver com o Sam», acrescenta Wilson. «Alguns duvidaram se seria um realizador de ação, mas ele percebe o género e transforma cada sequência de ação – como uma perseguição de carros – numa mini-história que merece ser contada.»

A dúvida circula nos corredores: Sam Mendes e Daniel Craig manter-se-ão? «É uma dream team e o meu trabalho é convencê-los a ficar», diz Barbara. «E não estamos à procura de um novo James Bond. É como perguntar a uma noiva que se prepara para casar: “Quem é o seu próximo marido?”»

POUCO DEPOIS DAS 11H00, os jornalistas dividem-se por grupos nas várias salas do primeiro piso do hotel. É a ronda de imprensa internacional com o elenco de Spectre. Os herdeiros de «Cubby» Broccoli surgem-nos na sequência das conversas com a italiana Monica Bellucci (Lucia Sciarra), a francesa Léa Seydoux (Madeleine Swann), o austríaco Christoph Waltz (Franz Oberhauser), os ingleses Ben Whishaw (Q) e Naomie Harris (Eve Moneypenny) e o norte-americano Dave Batista (Mr. Hinx). Mesmo descontando os elogios de circunstância, percebe-se que Sam Mendes é um realizador unânime entre os atores, e por motivos diferentes. Ben Whishaw destaca a confiança – «é um excelente líder, uma mente criativa brilhante». Naomie Harris sublinha o ambiente nas filmagens – «é tão calmo, goza cada momento, tem sentido de humor e lidamos melhor com a pressão». Monica Bellucci compara-o a um pianista, «milimétrico no detalhe» – «sabe trabalhar com os atores como se fôssemos um piano, com diferentes notas». E Léa Seydoux, a mais tímida, reconhece-lhe a «sensibilidade, o olho clínico e a boa química criada».

O ex-marido de Kate Winslet, realizador dividido entre o cinema e o teatro, sabe que, aconteça o que acontecer, a máquina 007 seguirá dentro dos carris. «Com Bond», sublinhou em entrevista à GQ, «estamos num comboio sempre em movimento, que continuará de qualquer forma sem ti.» Por agora, a licença de Mendes é para descansar. Numa carruagem à escolha.

BOND SENTIMENTAL
O próximo James Bond pode ser negro? Há alguma hipótese de um dia o agente 007 ser interpretado por uma mulher? Poderá casar com Madeleine no próximo filme? Todas as perguntas são possíveis quando dezenas de jornalistas de todo o mundo se reúnem com o elenco de Spectre. Barbara Broccoli, produtora da saga, esclarece as dúvidas em três segundos: «Daniel Craig é o nosso James Bond, ponto final.» Neste 24.º filme (148 m), o segundo realizado por Sam Mendes, o agente secreto enfrenta os tentáculos tecnológicos de Franz Oberhauser (Christoph Waltz), luta contra Mr. Hinx (Dave Bautista), envolve-se com Lucia Sciarra (Monica Bellucci), apaixona-se por Madeleine (Léa Seydoux) e, com a ajuda de M (Ralph Fiennes), Q (Ben Whishaw) e Moneypenny (Naomie Harris), emerge mais sentimental, fortalecido por um novo fôlego interior. A partir de agora, tudo é possível. «Dizem que estás acabado», diz Moneypenny. «O que achas?», pergunta- lhe Bond. «Acho que ainda agora começaste.»