«Detesto o meu passado e o passado dos outros. Detesto a resignação, a paciência, o heroísmo profissional e todos os bons sentimentos obrigatórios.» Dito isto, talvez Magritte tenha desaparecido entre as nuvens, chapéu‑de‑chuva aberto, ou se tenha esgueirado pelas Galleries Royales de Bruxelas, de braço dado com Georgette. O pintor surrealista nasceu na Bélgica a 21 de novembro de 1898. Imagino que teria sorrido se, 117 anos e um dia mais tarde, assistisse à invasão de gatos que entupiu as redes sociais, a resposta maravilhosa dos belgas ao apelo da polícia para que não partilhassem informações sobre a operação de segurança de domingo.
Eu sei que é de bom tom criticar os belgas, falar deles com condescendência, como quem faz anedotas sobre alentejanos (como antes sobre Samora Machel e, ainda mais para trás, o ex‑presidente brasileiro Costa e Silva). Mas isso de brincar com os belgas, com todo o respeito, é uma coisa de franceses, que se tomam sempre tão a sério, na literatura, na filosofia e na dor e que assim mesmo sofreram – e com que dignidade – um golpe cruel e tremendo na sexta‑feira 13. Aqui venho eu defender o país de Magritte, Hergé, Franquin, Folon, Jan Fabre, Jacques Brel e o maravilhoso homem da harmónica, Toots Thielemans, que só de pisar um palco faz logo uma plateia sentir‑se feliz.
Ter uma maré de felinos em vez de indicações sobre metralhadoras e homens embuçados já não era pouca coisa, mas no dia seguinte veio o agradecimento da polícia: no Twitter, um prato com comida para os gatos. Não que gostasse muito de polícia e autoridades em geral, mas Magritte voltaria a sorrir, acho eu. E Gaston Lagaffe nem daria por nada, ocupado como estava a imaginar maneiras de nada fazer e ainda assim tropeçar.
Bruxelas passou dias inteiros em casa, agarrada à televisão, às rádios, aos sites dos jornais, a ouvir notícias ameaçadoras depois de uma semana em que Molenbeek se tornou o foco do mal. Sonhou com mexilhões e cerveja entre amigos, ou uma gauffre e um chocolate quente, mas nem das janelas de casa podia aproximar‑se. E reagiu como só pode reagir a capital que tem por ícone um menino a fazer chichi e com um enxoval de mais de 80 roupinhas.
Ninguém sabe bem o que é ser belga, porque há os flamengos, os francófonos e os de Bruxelas com a sua pronúncia especial, a terminar as frases num hein que não quer dizer nada mas está em toda a parte. É uma pequena planície feita país que Jacques Brel declinou de todas as maneiras, como se ser belga fosse mais uma espécie de doença do que um sentimento de pertença. O país, diz Brel, que tem as catedrais como únicas montanhas, com um céu tão baixo que um canal se perdeu, um céu tão cinzento que temos de perdoar‑lhe.
Mas o que sei deste país que viveu 541 dias sem governo é que uma pessoa sai da ruela onde o Manneken Pis continua minúsculo, e entra numa das praças mais belas da Europa, a Grand Place, e sobe ao Monte das Artes e tem tanta coisa para ver, e atravessa o pequeno país e encanta‑se com Brugges, Ghent, Antuérpia, Lovaina e ali está uma parte da história da Europa, com o bom e o mau que isso significa, e o muito bom e o muito mau.
Com uma caixinha de chocolates que parecem joias de tão bonitos e delicados, espero a minha vez de entrar no Museu Magritte,confio o chapéu‑de‑chuva ensopado na receção, e aprendo a vida dura e corajosa do pintor. «Amo o humor subversivo, as sardas, os joelhos, os cabelos compridos de mulher, o sonho das crianças em liberdade, uma rapariga a correr pela rua», disse René, marido de Georgette, cantados por Paul Simon como quem não quer a coisa.
[Publicado originalmente na edição de 29 de novembro de 2015]