Por entre os pingos da chuva

Notícias Magazine

E, de repente, vem-me à ideia o som da água de um ribeiro a escorregar pelos limos das rochas, desdobrando-se em gotas e pingos que nos atingem o regaço quando nos debruçamos para, com as mãos em concha, bebermos um pouco daquela frescura que tão bem nos sabe, no meio do calor das tardes de Verão.

É diferente do som das ondas a rebentar contra a areia, numa praia. Apesar de ser água, não é a mesma água. E não é só o sal que as separa. Ou o facto de umas separarem continentes e outras, margens. É também a generosidade com que a água doce se predispõe a dar-nos vida sem nada pedir em troca. Correndo das montanhas apressada para se juntar ao sal da terra no mar, guarda ainda assim algum tempo para que nos possamos abeirar dela e retirar a água de que precisamos para matar a sede.

Esta relação entre a água e quem a bebe sempre se fez de cumplicidade, de um vulnerável equilíbrio entre as duas partes. Infelizmente, mais ou menos desde o período da Revolução Industrial, o ser humano tem vindo a convencer-se de que é o dono disto tudo e de que tudo se encontra sujeito à sua vontade.

Aprisionou a água doce, marcou-a e disse que era sua. A água que antes corria livre, ao alcance de todos para que a apanhassem, é agora pintada de cores e químicos pelas fábricas que se plantaram à beira-rio, suja pelos detritos e esgotos que lhe lançamos e captada e engarrafada para que a compremos.

Sem água não vivemos, é um truísmo. Mas é, sobretudo, a lembrança de que sem água não teríamos vida na Terra. Dela vimos todos os que respiramos ar. A nossa procedência é líquida e líquida devia ser a nossa devoção para com aquilo que nos permitiu que vivêssemos. Mas, se nem aos nossos pares outorgamos igualdade, separando a espécie humana em caixinhas onde cabem todo o tipo de estereótipos e futilidades que pouco apontam ao interior comum que partilhamos, como poderíamos esperar que pudéssemos tratar com dignidade qualquer outro elemento externo?

Chegámos a um ponto da nossa existência em que o barulho da avidez é tão ensurdecedor, que deixamos de ouvir o som da água a cair do céu e a bater com toda a força no chão, o fim da sua viagem. Deixamos de nos relacionar com ela e habituamo-nos a que a sua existência possa ser controlada pelo gesto que abre e fecha uma torneira. E como o gesto que abre e fecha uma torneira é comandado pela vontade de beber, mas controlado pela sede de poder, privatizaram-se as águas em Portugal.

Na sua mente louca, em desvario, acham os que votaram a favor de tal crime que um elemento da natureza que é, por inerência livre, pode ter donos. Que pode ser colhido, aprisionado e dividido para depois ser vendido a retalho, ao sabor das leis de mercado e da ganância humana.

O bem comum passa a ser expressão non grata. A culpa deve ser do novo Acordo Ortográfico, claro. Baniu letras mortas e mudas, que já não fazem falta a este mundo cheio de sons de progresso. O que lhes desejo, aos que acham que é possível e legítimo privar o todo de uma coisa que é de todos e taxá-la de acordo com os seus interesses, é que sequem, que mirrem, como o deserto de ideias e emoções que são e que, ao mirrarem, se lembrem do som da água do ribeiro a correr, soltando gotas que, pesadas, vêm cair no regaço de quem se dobra para a colher nas suas mãos, fresca, cristalina, pura, livre.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
31-5-2015