Pensava que o ponto cruz de hoje era muito diferente do ponto cruz de há 50 anos. Que o lugar onde poderíamos deixar a nossa marca enquanto cidadãs não era na passividade do gineceu, mas na vida activa da pólis. Que a minha cruz era escolher quem pode representar bem aquilo que acredito ser o melhor para o meu país e não ser mulher.
Fico baralhada. Pensava que o que se esperava de mim é que pudesse escolher o meu caminho e desenvolver as minhas capacidades de forma a poder aplicá-las na construção de um país mais desenvolvido e rico. Mas, afinal, o meu caminho é o caminho do lar e as minhas capacidades estão relacionadas com a procriação.
Pisco os olhos com força e afasto esse pensamento de mim. Não, eu não quero ser uma dona de casa perfeita, que gere de forma exemplar o seu lar e é considerada o pilar silencioso de toda a família. Eu quero ser aquilo que me der na real gana e não quero ser pressionada para caber numa imagem preconceituosa daquele que será o meu papel social, determinado pelo meu «papel biológico».
Eu cumpro-me naquilo que sinto ser o ideal para mim e não num guião previamente escrito que me indica o caminho do lar. Pior, que me diz que posso cometer a ousadia de me lançar no mundo profissional sem restrições, desde que não me esqueça de continuar a pugnar pela harmonia familiar.
Desconsola-me saber que alguns dos que gerem os destinos políticos e económicos do país pensem que recai apenas sobre mim a gestão do lar que habito e a maior responsabilidade que me destinam é a de ter filhos e cuidar deles. Quem faz um filho, fá-lo por gosto, pois claro. E a dois, é preciso não esquecer.
Para mim, tudo funciona melhor se o fizermos em equipa. Se se queria fazer uma comparação entre a gestão de um país e a gestão de uma casa, poderia pegar-se por aí: pelo trabalho em equipa. Como um conjunto de pessoas podem dividir responsabilidades para ajudar a construir um bem maior.
Mas também devo confessar que não aprecio por aí além quando se compara a gestão de um país à gestão de uma família. Para já, porque ao contrário do que acontece numa relação amorosa, que está na base da constituição de uma família, eu não me apaixono por políticos. Posso gostar mais de um ou de outro, identificar- me com as suas ideias ou não. Mas seria difícil passar a minha vida toda ao lado de um, teria de ser bastante virtuoso e fiel à sua palavra, coisa que parece não abundar na res publica. Aliás, seria até pouco democrático escolher um político para a vida. A isso chamar-se-ia ditadura. Portanto, logo aí, a comparação falha.
E da perspectiva contrária, se as regras da escolha democrática se aplicassem à família, poder-se-ia dar o caso de a pessoa que a minha família e amigos achavam ter o melhor perfil para dividir a vida comigo não coincidir com a pessoa que eu havia escolhido para esse efeito e eu tivesse de aceitar a escolha da maioria.
Bem sei que era assim que as coisas funcionavam antigamente: um rei para a vida e uniões combinadas. E até é assim que ainda funciona numa parte do mundo. Mas parece-me que estamos melhor com líderes políticos rotativos e parceiros que amamos. Nem que seja para podermos exigir a uns clareza de ideias e responsabilidades pelo discurso e decisões que apresentam e a outros a divisão igualitária (e justa!) da gestão doméstica e familiar.
O meu ponto cruz é hoje diferente do ponto cruz de há 50 anos. Aprendam a lidar com isso, as vossas responsabilidades assim o obrigam.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
27-9-2015