Em 20 anos, a comunidade britânica do Porto passou de 700 para 70 pessoas. As velhas famílias de negociantes de vinho estão a desaparecer, à medida que as pequenas empresas são absorvidas por grandes grupos económicos. Os que ficam tentam preservar a cidade misteriosa e exclusiva que construíram sobre as uvas do Douro, ao longo de quatro séculos. História de um mundo em extinção.
Os nomes que enfeitam as fachadas das caves de vinho do Porto na frente ribeirinha de Gaia já não moram aqui. Os Taylor não moram aqui, nem os Graham, nem os Sandeman. Os Cockburn há muito que desapareceram, tal como os Dow, os Delaforce, os Croft e os Warre. Depois de quatro séculos de presença no norte de Portugal, a comunidade britânica está a desaparecer. Velhas famílias, que permaneceram durante gerações ligadas ao negócio do vinho do Porto, e que formavam, segundo a escritora Rose Macaulay, «o fenómeno mais romântico entre as comunidades inglesas no estrangeiro». Há algumas exceções – os Symington, os Robertson e os Churchill. E é nelas que assenta todo o legado e tradição da cidade que os homens de Sua Majestade construíram noutro país. Porque a verdade é que ainda há um mundo misterioso, exclusivo e irremediavelmente inglês que se cimentou nas margens do Douro. E esta é a história desse mundo – ou do que resta dele.
Paul Symington explica em três tempos o que aconteceu. «Primeiro foi o negócio que sofreu um sério revés a seguir à Segunda Guerra Mundial. A Inglaterra estava falida, a maioria das pessoas não sabe que o racionamento de comida e de produtos só aconteceu depois de 1945, não antes.» Colocar vinho do Porto no mercado era tarefa quase impossível «e uma grande parte das famílias britânicas da cidade vendeu os seus negócios às grandes multinacionais nos anos 1950 e 1960». Foram muito poucos os que conseguiram sobreviver a esses anos. «Então, a partir dos anos oitenta e noventa do século passado, houve uma consolidação dessas empresas. E deixou de ser necessário ter esta gente toda a trabalhar na área.»
Hoje, 85 por cento do mercado está concentrado em cinco grupos económicos. Dois deles – a Symington e a Taylor’s – são ingleses e geridos em família. Depois há os portugueses da Sogrape, os franceses da Gran Cruz e os venezuelanos da Sogevinus. «Todos eles compraram marcas com nomes ingleses», diz Manuel de Novaes Cabral, presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto. «É preciso não esquecer que estamos na região demarcada mais antiga do mundo e o valor patrimonial, o valor da tradição, é altíssimo.» Assim, os Graham, Dow, Croft e Sandeman sobrevivem. Se não nas famílias que lhes deram origem, pelo menos nas fachadas das caves de Gaia e nos rótulos das garrafas que viajam pelo mundo.
A Symington é dos principais operadores, com uma faturação anual de 90 milhões de euros e uma quota de 22 por cento do mercado. O fundador da empresa chegou em 1882, há cinco gerações, e, hoje, a família produz as marcas Graham, Cockburn, Dow e Warre. Os escritórios ficam em Gaia, na antiga casa do barão de Forrester, um mercador inglês a quem D. Fernando II concedeu título nobiliárquico em 1855 pelos livros que havia escrito em defesa das vinhas do Douro, pelos trabalhos de cartografia do rio e pela guerra que armou contra os produtores que adulteravam o vinho do Porto. Uma casa vetusta e imponente, à frente da qual se estende um relvado com vista para a segunda maior cidade portuguesa. É aqui que, todos os dias, cinco primos mantêm viva a tradição britânica de produzir e vender Porto.
Paul é o presidente da empresa, o seu irmão Dominic o diretor de marketing. Os primos Rupert e Johnny dirigem as finanças e Charles, o primo mais novo, é o diretor de produção. «A unidade da família é o segredo que nos mantém no topo», diz Paul num português com dois sotaques carregados, o inglês e o portuense. «Porque em família temos de jogar em fair play, o que aliás é uma caraterística muito inglesa. Trabalhamos todos no mesmo sentido, remamos o barco para o mesmo lado.» A ideia haveria de ser repetida por todos, ao longo do dia. Johnny Symington foi particularmente incisivo: «Fomos educados para ter uma empresa de sucesso, para fazermos o melhor possível para a nossa família. Todo o nosso legado – que é muito grande – gira em torno do vinho do Porto. E isso lembra-nos de que devemos tomar as decisões em consenso, não por maioria. Tal como num brinde, à saúde de todos.»
Apesar de se definirem como um misto de britânicos e portugueses, o inglês é a língua de trabalho na empresa. As instalações, aliás, espelham bem as origens dos Symington. Quadros antigos dos membros da família, retratos fotográficos a preto e branco, mobiliário vitoriano, até algumas balas de canhão atiradas pelas tropas anglo-portuguesas aos franceses, durante as batalhas napoleónicas. Todos os dias, os homens almoçam juntos na cantina da empresa. É a hora da descontração. Mais do que acertar as pontas do negócio aproveitam para recordar as velhas histórias do clã. «É um negócio de família e queremos que seja um negócio de família, porque o vinho do Porto corre-nos no sangue», diz Paul. «A geração seguinte sucederá à nossa, mas apenas depois de ter trabalhado noutro sítio.» Essa é uma das regras da empresa. Nenhum Symington começará a trabalhar na Symington sem antes ter tido um patrão e experiência de trabalho.
NA TAYLOR’S A LÓGICA É A MESMA. No mercado desde 1692, o grupo aposta no nome seguro de uma família antiga, apesar de ser hoje gerida por Adrian Bridge, que só chegou a Portugal em 1992. «O vinho do Porto é o ícone de respeito pelas tradições, por isso faz todo o sentido associá-lo a uma ideia de velha família.» Os rótulos da Taylor’s remetem para isso mesmo – além do nome da empresa, apresentam as garrafas Croft, Fonseca e Guimaraens, que lhes valem uma quota de 15 por cento no mercado das exportações. «Na verdade, este continua a ser um negócio caseiro», explica o homem com gestos largos. Adrian é casado com Natasha Robertson, filha do presidente honorário da empresa, Sinclair Robertson, descendente de quatro gerações de negociantes de vinho. «E sabe o que é melhor num negócio destes? É que ganhamos juntos, perdemos juntos e arriscamos juntos.»
O risco maior de que Adrian fala foi tomado em 2010, quando a família decidiu abrir um hotel de luxo no meio de uma crise económica. O Yeatman é um cinco estrelas, tem um restaurante com uma estrela Michelin e uma decoração toda inspirada no negócio do vinho do Porto. O nome presta tributo a uma das mais importantes famílias do negócio, sobretudo no século xix. «Foi uma aposta ganha, mas não sabíamos como ia correr», conta Adrian, frente a um copo de vinho, na biblioteca do hotel. Ao seu lado estão Natasha, a mulher, Max e Tatiana, os filhos, que têm 19 e 16 anos, respetivamente. Nenhum deles dá por garantido o facto de ir trabalhar no grupo, embora nenhum recuse essa possibilidade. «Vou perceber isso quando chegar a hora», diz o rapaz, «mas primeiro vou querer trabalhar noutro lugar.»
Há um túnel que liga a casa dos Bridge ao hotel onde, hoje, estão a organizar uma sunset party. A maioria dos convidados é portuguesa e a família tenta conversar na língua do país, embora entre eles as conversas decorram em inglês. «Eu estudei na Oporto British School, tal como os meus filhos», conta Natasha. «A diferença é que, no meu tempo, noventa por cento dos alunos eram britânicos e, hoje, noventa por cento são portugueses.» Max e Tatiana acenam que sim, a mãe tem razão. Os miúdos cresceram com a sua comunidade em franco declínio – e os lugares que eram os refúgios dos súbditos da rainha passaram a ser a aspiração das classes altas do Porto. Rupert Symington alinhava horas antes pela mesma batuta: «Há vinte anos havia 700 ingleses no Porto, que formavam uma comunidade fechada. Hoje não são mais de 70 pessoas. É uma redução intensa e extremamente rápida. Uma boa parte do mundo inglês está a ser absorvida pelos locais, que querem replicar a exclusividade de que um dia desfrutámos. E isso é um fenómeno curioso.»
Há um local onde dificilmente as novas famílias portuguesas entram, e esse é a Feitoria Inglesa. É o único edifício do género que sobreviveu no mundo mas, para olhos portugueses, continua a ser um segredo bem guardado. O clube existe desde 1727, o edifício desde 1790, e era ali que se juntavam os maiores negociantes ingleses de vinho do Porto. Um clube de cavalheiros, para a elite das elites.
No início do século xix, 38 membros tinham assento na mesa, hoje sobram apenas sete lugares – correspondentes às empresas inglesas que ainda operam na cidade. «A Symington tem três postos, um da Graham, outro da Cockburn e outro da Dow. A Taylor’s tem outros três – o da firma, o da Croft e o da Fonseca-Guimaraens. Depois há um lugar para a Churchill. Todos os outros desapareceram.» As palavras são de Euan Mackay, atual responsável pelo espaço. O seu cargo chama-se em inglês treasurer, o que em tradução literal seria tesoureiro, mas cuja conversão mais justa está provavelmente na origem etimológica da palavra: é o guardião do tesouro.
E o tesouro é precioso. Na cave do edifício descansa a maior coleção de portos vintage do mundo, estão ali alguns milhões de euros engarrafados. «Cada membro que entra tem de oferecer 12 dúzias de garrafas para o stock, e cada quarta feira é aberta uma garrafa. Temos 15 mil, apenas das colheitas mais notáveis dos séculos xix e xx. São, afinal, muitos anos a receber membros novos.» Há uma sala de mapas – com os originais da cartografia que o barão de Forrester fez do Alto Douro Vinhateiro – e outra de desenhos, em que há fotografias de Isabel II, que visitou o local numa viagem oficial a Portugal, em 1957. O enorme salão de baile, que todos os anos abria portas para a noite de fim de ano, e uma cozinha, que conserva a faiança e os instrumentos da época, ajudam a cimentar a imponência e a exclusividade da Feitoria.
Todas as quartas-feiras os membros convidam pessoas para o almoço. Os convidados devem trajar-se a rigor. Há duas salas contíguas de jantar, cada uma com 38 lugares à mesa. A primeira é onde se serve o banquete, a segunda onde se brinda, com Porto vintage, ao monarca reinante. «O brinde real é sempre feito com Porto, sempre», esclarece Mackay. Nos regimentos ingleses, qualquer jantar termina com uma garrafa de qualidade. «Calcula-se que a tradição venha das tropas anglo-portuguesas que combateram Napoleão na Península», diria dias antes Paul Symington. Mas, no Natal, nos jantares oficiais, um pouco por toda a Commonwealth, o vinho do Porto deseja saúde ao establishment.
No último piso da Feitoria há uma extraordinária biblioteca que hoje ninguém usa. Foi avaliada há uns anos e tem uma das mais valiosas coleções de livros de viagem e expedição escritos no século xix em língua inglesa. E tem primeiras edições de A Viagem do Beagle e A Origem das Espécies, ambas de Charles Darwin. «O que aqui temos são sobretudo as doações das bibliotecas das famílias que viviam no Porto e foram abandonando o país.» No total, mais de vinte mil livros, escondidos dos olhos do público num edifício neoclássico junto à Ribeira.
SE AQUI SÓ ENTRAM ALGUNS POUCOS e exclusivos membros, no outro lado da cidade há uma instituição britânica que não teve outro remédio senão deixar entrar o interesse português. O Oporto Cricket and Lawn Tennis Club é, apesar de tudo, um segredo bem guardado. Fundado em 1855, em Gaia, pelas principais famílias do vinho do Porto, era o clube social e desportivo onde a comunidade inglesa se juntava – e ainda junta. Hoje, o Field, como lhe chamam os britânicos, fica escondido atrás de um grupo de prédios no Campo Alegre. Entra- -se por um portão elétrico, oculto entre edifícios residenciais, e desagua-se num relvado enorme, onde, aos fins de semana, a equipa da casa disputa partidas de críquete com equipas que viajam propositadamente das Ilhas para o efeito.
Há vários campos de ténis de terra batida, uma piscina ao ar livre, alguns quartos para receber convidados, um restaurante ao qual cada membro não pode levar mais de quatro convidados. É obrigatório o uso de casaco e gravata durante a semana, só aos sábados e domingos é permitida a informalidade de uma tarde em mangas de camisa. «Atualmente, temos 980 sócios, dos quais 500 são portugueses», diz Tim Chambers, presidente do clube. «Sem eles, estaríamos simplesmente falidos.»
Hoje há jogo de críquete e Anthony Chambers, 21 anos, já marcou uns bons pontos pela equipa da casa. O rapaz é filho do presidente, fala português com carregado sotaque nortenho, está a estudar Desporto em Inglaterra, como a maior parte dos amigos com quem cresceu. «Fazemos aqui a escola britânica e depois vamos para as universidades inglesas. Antigamente, só se ficava cá na escola primária. Os meus irmãos mais velhos estudaram em colégios internos em Londres.» Considera-se meio português, e um dia quer voltar, mas sabe que é uma exceção. «Só os membros das famílias com negócios estabelecidos é que regressam a Portugal. E esses são cada vez menos.»
O bar do clube está vedado aos menores de 18 anos – esses têm uma sala com jogos, livros e televisão para se entreterem. Uma enorme sala com desenhos do barão de Forrester e mesas de bridge é normalmente usada para a leitura dos jornais do dia – e estão lá todos, portugueses e ingleses. Cá fora, uma piscina para os dias quentes de verão. Uma sala de squash nas traseiras. «Já pensámos modernizar-nos, mas são os sócios portugueses que querem que mantenhamos as coisas como estão», diz Tim. São cinco da tarde, o jogo de críquete é interrompido durante meia hora para chá e scones. «Eles apreciam verdadeiramente este elitismo inglês. Ao entrarem, a sensação de estarem num mundo exclusivo torna-se provavelmente mais forte para as elites portuguesas», explica.
DOMINGO É DIA DE MISSA e, embora haja famílias convertidas ao catolicismo, o núcleo central dos ingleses frequenta a Igreja Anglicana de Saint James, que disputa com o Mónaco o título de mais antiga igreja de Inglaterra fora dos limites do império britânico. A diocese foi fundada em 1660, o templo propriamente dito tem 200 anos exatos. Foi construído nos terrenos do cemitério inglês com o dinheiro de Baco, ou seja, do produto das vinhas do Douro. Bob Bates, o reverendo, chegou há um ano e meio, depois passar cinco no Algarve. «No Sul as pessoas passam temporadas, não vivem há gerações. Aqui há todo o peso dos séculos, são pessoas para quem é muito difícil mudar as mentalidades. Esta igreja é o seu refúgio seguro.»
A primeira medida que o sacerdote tomou foi retirar o sinal que dizia «entrada proibida» no portão de acesso. «Encontrei alguma resistência, na verdade. Esta comunidade está muito assustada, hoje não vieram mais de 18 pessoas ao serviço. Veem que o seu mundo está a desaparecer e é difícil adaptarem-se às novas circunstâncias.» Depois da missa, é servido um porto ou um chá no salão contíguo à igreja. E aí a conversa é a de todos os dias. Que já não há crianças inglesas na escola britânica. Que há cada vez menos súbditos de Sua Majestade no Field. Que o velho Oporto tem os dias contados.
Peter Cobb, que toda a vida trabalhou para a Cockburn’s, tem uma boa explicação para o fenómeno. «Os ingleses convivem tendencialmente com os ingleses, faz parte da fleuma. E depois é muito difícil aprender português, por isso a maioria das pessoas, mesmo as que nasceram aqui, só arranham a língua.» Na sua casa na Foz há uma bela biblioteca de onde rouba o livro que o pai escreveu, Oporto Older and Newer, sobre a comunidade britânica da cidade. «À medida que a comunidade britânica encolhe, os interesses diversificam-se mas, paradoxalmente, as pessoas unem-se mais do que nunca», lê-se no livro de Gerald Cobb. E depois o filho atira com este exemplo: «Há dias um cinema da cidade passou em direto o Otelo, encenado pelo Royal Shakespeare Theatre. Era uma transmissão em direto de uma peça que estava a ser apresentada em Inglaterra e, apesar de não sermos mais uma vintena de pessoas no público, delirámos com tudo aquilo. Porque era algo nosso, realmente nosso.»
Não é só no Porto que as famílias inglesas resistem. Se no século xix as vinhas do Douro eram controladas essencialmente por portugueses, os britânicos com quintas no rio prestam hoje muito mais atenção às suas propriedades – e muitos começaram também a produzir vinho de mesa. Charles Symington chegou ao Pinhão há dois dias, que é preciso preparar a época das vindimas. Chegar à Quinta do Bomfim, onde vinha passar férias em criança, era há vinte anos uma aventura. «A viagem demorava cinco ou seis horas de carro e às vezes os meus pais e tios convidavam alguns clientes ingleses para nos visitarem. Chegavam sempre completamente esbaforidos.»
Em maio, os Symington abriram um centro de visitas na propriedade, que tem tido grande afluência. A casa da família fica uns metros acima, no meio da vinha. «Há várias casas como esta no vale, construídas segundo o modelo arquitetónico colonial do Ceilão, atual Sri Lanka», conta o mais novo dos sócios da Symington. Enquanto abre as portas de casa, aparece Zimba, um leão-da-rodésia que viaja constantemente com o dono entre a cidade e o vale. Lá dentro todo o espanto da herança britânica, fotografias e móveis, loiças e pinturas. Podia fazer-se um filme de época dentro desta casa.
Quando as famílias chegavam ao Douro, hasteavam a bandeira britânica e esse era o sinal de que tinham chegado. «Nós, que éramos miúdos, fazíamos grandes caminhadas para encontrarmos os nossos amigos. Depois, enquanto os nossos pais iam para as caçadas, entretinhamo-nos a observar aves ou caçar borboletas. Isto era o fim do mundo, o nosso território de aventuras.» Mas foi ali, mais do que no Porto, que todos os Symington, Robertson e Taylor se apaixonaram irremediavelmente pelo vinho do Porto. E é ali que, ainda hoje, todos rumam no fim da vindima para celebrar o legado britânico das encostas do rio, para terminar a noite com um brinde à rainha num cálice de vinho adocicado.
[Publicado originalmente a 6 de setembro de 2015]