Os segredos do comportamento animal

Nem sempre foi compreendido, mas a sua luta pelo bem-estar animal tornou-o uma das referências na área. Com vocação para ajudar a salvar vidas, Gonçalo da Graça Pereira estuda o comportamento animal dividindo-se em múltiplas atividades. A mais recente foi a fundação do Centro de Conhecimento Animal, inaugurado há um mês em Lisboa.

QUEM É GONÇALO DA GRAÇA PEREIRA?
Tem 37 anos, é doutorado em Ciências Veterinárias, especialista europeu em Medicina do Comportamento e diplomado pelo Colégio Europeu de Bem-Estar Animal e Medicina do Comportamento. Fundador e diretor científico-pedagógico do Centro para o Conhecimento Animal, é ainda presidente da PsiAnimal, formador e palestrante em seminários, conferências e congressos nacionais e internacionais.

O que levou à criação do Centro de Conhecimento Animal?
_Um desejo meu e da bióloga Sara Fragoso, com quem trabalho há muito tempo em vários projetos, que surgiu há cerca de seis anos e finalmente concretizou-se. Uma das áreas em que trabalhamos relaciona-se com os problemas de comportamento nos animais de companhia (cães, gatos e não só). Grande parte destes problemas não existiriam se fosse feita uma boa prevenção. E esta passa muito pela formação do tutor, que é, a nosso ver, basilar. Disponibilizamos também um departamento de consultoria para avaliação de bem-estar nas várias etapas da produção e também de uma área focada na investigação porque, para podermos demonstrar os resultados, temos de investigar. Temos ainda uma área inovadora no país e que consiste na intervenção no luto de um animal de companhia. Em suma, pretendemos melhorar o bem-estar dos animais, sejam eles selvagens, de companhia, de produção ou de zoológicos.

Não gosta das expressões «proprietários» nem «donos» de animais de companhia e prefere chamá-los de «tutores». Quer explicar?
_As palavras «dono» e «proprietário» sempre me causaram algum prurido. Dono de quê? O animal já deixou de ser uma «coisa» e passou a fazer parte do Código Penal. Os americanos referem-se a animal guardians, mas a tradução para português não soa muito bem. Numa ida ao Brasil apercebi-me de que usavam «tutores» e fez-me sentido. Já fui muito criticado por alguns veterinários mas a nossa língua está viva e em constante evolução. Podemos introduzir a palavra no nosso léxico.

É importante saber fazer o luto na perda de um animal?
_Não é socialmente aceite, mas a maioria das pessoas que tem um animal de companhia assume-o como mais um membro da família. Assim, perdê-lo é perder um ente querido, apesar de nem todos o compreenderem. Há muitos tutores que sofrem imenso com a perda dos animais e não têm a quem recorrer. A partir de agora já têm.

E quanto às terapias assistidas com animais, em que consistem?
_No acompanhamento de crianças com várias doenças de diversos foros, mas também idosos com complicações motoras que poderão usufruir destas terapias assistidas, nesta primeira fase, com cães.

O facto de as terapias serem realizadas com cães pode ser motivador?
_Cada vez há mais estudos científicos que se focam nas vantagens da pet therapy, não apenas com cães. Outros estudos indicam, por exemplo, os benefícios de ter um gato num lar porque o toque do idoso num gato vai diminuir a pressão arterial. Há animais que vão ajudar crianças a hospitais, pacientes oncológicos e doentes terminais. São uma enorme ajuda nesta fase, pelo que temos uma panóplia de projetos para desenvolver com muitas entidades dentro destas áreas.

Em que consistirá a formação para tutores e para profissionais?
_Preocupa-nos a formação específica para profissionais, desde o médico veterinário ao treinador e passando pelo tratador de animais ou produtores. Todas estas pessoas têm de trabalhar no mesmo sentido. Por isso, teremos pós-graduações e cursos avançados dirigidos a profissionais específicos.

E quanto aos tutores?
_Temos cursos mais informais dirigidos a pais que vão adquirir um cão ou um gato e que precisam de saber o que fazer para assegurar o relacionamento com o animal. Temos também aulas de socialização para cachorros em que também os tutores participarão. Teremos ainda sessões para tutores de gatos porque estes são animais que «sofrem calados» e podem passar toda a vida a sofrer e os tutores, não tendo os conhecimentos sobre as suas necessidades fundamentais, acabam por cometer erros involuntários.

Os gatos são mal compreendidos?
_Sim, e um dos grandes mitos é de que é independente. Por norma, as pessoas que dizem que detestam gatos, na sua maioria, nunca tiveram um e nem sequer conhecem os felinos. Enquanto o cão é um animal social, gregário, que nos diz claramente que nos ama, abana-se, salta, pula, o gato, apesar de social, prefere contactos curtos com as pessoas (ou outros gatos), mas várias vezes ao dia. O gato aproxima-se, roça-se e continua o seu caminho. Esta é a forma de «dizer» que nos ama.

Qual a sua opinião sobre os programas de televisão que visam a educação dos tutores de animais de companhia?
_Os programas televisivos são uma das fontes mais fortes de educação, mas na maioria das vezes são pessimamente usados. Há cinco ou seis anos que tenho um programa educativo programado e destinado a tutores, mas não consigo colocá-lo no ar por vários motivos, sobretudo devido aos grandes custos envolvidos.

São pessimamente usados porquê?
_Infelizmente, a maioria dos programas baseia- se num mito que vem dos anos 1970 e que indica que o tutor tem de ser o líder da matilha. Isto, além de errado, é muito preocupante porque não só causa um confronto direto entre o tutor e o cão, como nos leva a interpretações muito erradas do comportamento deste. Noventa e oito por cento da agressividade nos cães, que inicialmente utilizam todas as formas de comunicação que têm para evitar a luta, começa por medo. Um cão que rosne pode estar com medo, mas o seu comportamento é interpretado como agressivo. Por exemplo, se castigado, na próxima vez poderá morder sem rosnar. Torna-se por isso ainda mais imprevisível. Além disso, estes programas dão a falsa sensação de que é fácil resolver os problemas de comportamento, quando podem levar meses a ser resolvidos.

Subsistem muitos mitos relacionados com os problemas de comportamento animal?
_A própria classe veterinária só há pouco tempo é que começou a assumir que o cérebro pode ter doenças e que tem de ser tratado, da mesma forma que tratamos o pâncreas, os intestinos ou o estômago. Quando comecei nesta área era visto um pouco como o «excêntrico» ou o «lunático». Mas como hoje os clientes, quando vêm a uma qualquer consulta com o seu animal, cada vez mais questionam os veterinários, estes já me vão encaminhando muitos casos.

O que o levou a escolher o curso de Medicina Veterinária?
_Apesar de o meu amor profissional ser a Veterinária, a minha paixão e sonho agora adormecido é a representação. Sempre tive uma paixão pelo teatro e o cheiro do palco e, talvez por isso, adoro ensinar. Até ao 9.º ano não me importava de seguir o ramo de ensino desde que ligado à biologia, mas no 10.º comecei a achar que deveria ser veterinário. O meu pai era treinador de cães da GNR, a minha tia sempre teve gatos… e aprendi muito a respeitar a vida, tanto com os meus pais como com os meus tios, considerando que poderia ter um papel importante a salvar vidas. Sempre achei que a minha missão seria a de ajudar os animais, as crianças e os idosos.

E dentro da Veterinária como se deu a escolha da especialidade?
_Quando entrei para a faculdade, fiquei chocado ao constatar que além de não salvarmos vidas, ainda matávamos animais para estudar. Por isso, nesta fase da vida, sendo docente na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona, honra-me dizer que esta é uma das faculdades que não fazem experimentação animal. A maioria das pessoas que entra em Veterinária gosta de animais, por isso alguns abandonam o curso (outros até optam por nem se candidatar), enquanto outros sofrem uma dessensibilização passando a ver os animais como máquinas. Não sendo este o meu desejo, logo no primeiro ano de faculdade comecei a trabalhar com a Liga Portuguesa dos Direitos do Animal, na qual ainda me mantive a trabalhar como veterinário durante vários anos. Por isso, ao terminar o curso senti necessidade de complementar a minha formação e descobri um mestrado em Etologia Clínica e Bem-Estar Animal. Durante um ano, fui quase todos os fins de semana para Madrid para o tirar.