Os lobos, os homens e a guerra entre eles

Ricardo J. Rodrigues, jornalista da Notícias Magazine, lança esta semana um livro que nasceu de uma reportagem publicada na revista. Fala do desaparecimento da vida selvagem, da falência do mundo rural e de uma ideia de progresso que não serve gente nem bichos. Aqui pré-publicamos um excerto de Malditos, Histórias de Homens e de Lobos.

Está um animal deitado sobre uma mesa metálica, de olhos fechados, morto. À sua volta estão homens e mulheres vestidos com batas e luvas e o ambiente não deve muito ao da sala de operações de um hospi­tal. Estão três biólogos, três veterinários e três médi­cos-legistas. E está o lobo – aliás, a loba. É uma fêmea. Tem sangue na vulva, o que significa que estava em período de aca­salamento. Mede 1,64 metros desde o nariz à ponta da cauda, o que significa que não é grande nem pequena. Junto à têmpora esquer­da, a marca de uma bala. Calibre 22, há de perceber-se mais tarde. É o mesmo tiro que matou Kennedy. Foi disparado de cima para baixo, a curta distância. À queima-roupa.

Urzeira morreu na guerra.

Era esse o seu nome, batizada pelos biólogos que a seguiam desde cria. Urzeira, porque nasceu no meio das urzes da serra do Soajo, no la­do minhoto do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Tinha três anos e meio, menos do que o devido a um lobo-ibérico – mesmo em estado selvagem, e mesmo em Portugal. Um lobo selvagem aguenta seis anos, sete no máximo. Em cativeiro pode chegar aos dez, havendo relatos de bichos que aguentam doze. Como um cão, mais coisa, menos coisa.

A necropsia feita no Laboratório Nacional de Investigação Ve­terinária, perto de Vila do Conde, durou umas duas horas. Toda a carcaça teve de ser desmanchada para se perceber se havia uma ou duas balas, e em que condições tinha morrido o animal. Esse últi­mo exame – e o sistema de telemetria que permitia acompanhar a atividade do lobo – revelou conclusões importantes. Urzeira mor­reu às sete horas de uma madrugada de março de 2013. Tinha o es­tômago pesado, a última caçada há de ter sido pelas duas da ma­nhã, havia pele e ossos no estômago e a carne já tinha sido digeri­da. O local onde foi encontrada não era parco em presas, mas era perigoso como o raio. Para lá chegar teve de atravessar uma pai­sagem extremamente humanizada. Passou estradas, contornou casas, desviou-se de homens.

Existem, em média, 300 lobos em Portugal, que ocupam essen­cialmente a zona do Gerês e de Montesinho, mais um núcleo ao Sul do Douro. Os seus territórios são cada vez mais reduzidos, na mesma medida em que os riscos a que estão sujeitos cresceram. As estradas, barragens e parques eólicos que tomaram conta da paisagem rural nas últimas décadas cercaram os bichos em nome da ideia de desen­volvimento. O progresso chegou ao interior nos últimos 20 anos, sim, mas sem conseguir deter a sangria demográfica e ameaçan­do muito seriamente a viabilidade da fauna selvagem. Sem terri­tório para caçar, os lobos portugueses vão desaparecendo a uma velocidade alarmante.

O feito extraordinário da loba morta com um tiro de calibre 22 foi ter conseguido chegar a uma zona isolada, atravessando todo o tipo de perigos para se estabelecer. Mas vamos ao início da histó­ria. Urzeira era um caso de estudo. Não só por ter conseguido che­gar a uma zona isolada mas por ter cumprido uma vida a contornar a morte. Ainda a loba não tinha feito dois anos quando os cientistas do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéti­cos da Universidade do Porto (CIBIO) lhe colocaram uma coleira com um dispositivo GPS para seguirem diariamente os seus pas­sos. “Na altura da captura ela ainda vivia com os pais e os irmãos na alcateia do Soajo”, conta Helena Rio Maior, a bióloga que a seguiu desde as primeiras horas de vida até à morte. “Mas estava a entrar na idade adulta.” As regras da alcateia são apertadas, só o macho e a fêmea dominantes podem reproduzir-se. Quando atingem a maio­ridade, alguns animais desafiam a autoridade. E, esses, ou ganham ou perdem. Se vencerem, passam a ser eles os líderes. Se saírem derrotados, abandonam o grupo e procuram uma nova família.

Quando os biólogos a capturaram para lhe colocar uma colei­ra GPS, Urzeira tinha uma pata partida. A da frente, do lado direi­to, com fratura exposta. Pode ter sido causada por uma armadilha de que se tenha consegui­do escapar, por um salto ou uma queda. “Ela es­tava sedada quando vi o osso. E percebi que, se não fosse operada urgentemente, a morte era o destino mais certo”, lembra Helena Rio Maior. Ela e Ricardo Brandão, veterinário do Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Ani­mais Selvagens da Serra da Estrela, que costu­ma acompanhar os biólogos do CIBIO nas in­vestigações de campo ao lobo-ibérico, saíram largados, numa carrinha. Destino: hospital veterinário da Universidade de Trás-os-Mon­tes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real. Mais de duzentos quilómetros de curvas e contra­curvas. O relato do salvamento é de suster a respiração.

Dez e meia da manhã. Urzeira é coloca­da sobre uns cobertores na mala traseira doveículo. Tapam-lhe os olhos, para não acor­dar em pânico, e cobrem-lhe o corpo, para permanecer quente. Ricardo segue no banco de trás, a mala com as agulhas e os sedativos a postos, o animal não podia recuperar consciência antes de chegar ao destino. Tenta ligar para a universidade transmontana, para prepara­rem a sala de operações. Não tem rede. Helena Rio Maior segue ao volante, mas não pode conduzir demasiado rápido. Afinal es­tá a transportar um bicho ferido. É dia seis de fevereiro de 2012, faz frio e nevoeiro.

Onze e cinquenta. Helena consegue estabelecer a ligação para a Faculdade de Veterinária da UTAD. Do outro lado da linha atende Filipe Silva, vice-diretor do hospital, que lhe promete estar a pos­tos para a cirurgia. De repente ouve-se o barulho de um pneu re­bentado, o carro teve um furo. O sedativo de Urzeira é reforçado. Dirigem-se logo à aldeia do Soajo para trocar de carro.

Meio-dia e quarenta e cinco. Urzeira é colocada no banco de trás do jipe de Helena. Quando arrancam, a bióloga desdobra-se em te­lefonemas. Há possibilidades do animal não precisar de passar o resto da vida em cativeiro. Já tinha afinal aprendido a caçar e, se a pata recuperasse, teria boas hipóteses de voltar ao estado selvagem. Um cientista, nestas alturas, também reza.

Duas da tarde. Paragem em Ponte de Lima, na clínica veterinária mais próxima. É feita a primeira avaliação. Um raio X confirma a fra­tura exposta na pata dianteira, mas há boas possibilidades de recu­peração. Urzeira é analisada de uma ponta à outra, não tem mais le­sões. Tem a dentição completa, o que não deixa de ser um bom sinal. Como é que um predador sobreviveria sem armas para caçar? A loba vol­ta a ser sedada e colocada numa jaula, é de no­vo transportada para o carro. Já passa das cin­co quando se fazem à estrada, e agora vai mais um veterinário com eles, para monitorizar os sinais vitais do bicho. Do outro lado do telefone, a UTAD avisa que está preparada para operar.

Oito da noite. O carro entra no campus da universidade e a jaula de Urzeira é levada pa­ra o bloco operatório. Helena avisa que o ani­mal deve ser o menos intervencionado possí­vel, já a pensar numa possível devolução à na­tureza. Quaisquer contactos com humanos é nocivo, há que evitá-los ao máximo. É operada de imediato, os veterinários colocam-lhe uma prótese de alumínio na pata. Não é uma cirur­gia complicada, o que pode ser complicada é a recuperação.

Dez e meia da noite. A cirurgia termina. O prognóstico  é animador.»

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CONTRA O ESQUECIMENTO

Intermitentes mas constantes. Volta e meia, as notícias de lobos que atacam rebanhos enchem os jornais e as televisões. É bem capaz de ser a história mais antiga do mundo, mas continua a convocar o mesmo interesse ancestral. No relato da morte de uma ovelha cabe a tragédia de um pastor, cabe a ferocidade de um predador e cabe um país que sabemos que existe, mas de que inevitavelmente nos esquecemos.

Em 2012 falava-se de Covas do Monte, aldeia de São Pedro do Sul, que era morada do maior rebanho comunitário do país – mil cabras para 48 habitantes. Os lobos andavam a atacar o gado e o povo revoltou-se, pediu às autoridades que se removessem os predadores, senão dariam eles mesmos conta da alcateia. Era uma jura de raiva. Há trezentos lobos em Portugal, estão ameaçados de extinção e por isso protegidos por lei.
Sete anos antes, tinha escrito um livro sobre lobos (Bitcho Bravo, na coleção Cadernos de Reportagem das Publicações D. Quixote). Nascera de uma reportagem que tinha feito com Francisco Álvares no Gerês transmontano, também para a Notícias Magazine. O biólogo tinha passado dez anos a estudar as alcateias da região e a sua história tinha ingredientes fascinantes. No meio de uma terra que odiava os lobos, ele tentava defendê-los.

Quando as notícias dos ataques em Covas do Monte vieram a público, decidi voltar ao terreno. Na história daquela raiva estava uma guerra muito antiga, em que todos – homens e feras – estão sempre a perder qualquer coisa. Em outubro de 2012, publiquei na Notícias Magazine a reportagem Na Guerra aos Lobos não Há Vencedores. Era a história de uma alcateia cercada, de um povo pobre e da luta de ambos pela sobrevivência.

Umas semanas depois a Fundação Francisco Manuel dos Santos, pela voz do seu diretor editorial, António Araújo, convidou-me para escrever um livro sobre o tema. Expliquei que já tinha escrito bastante sobre lobos, corria o risco de me repetir. Mas depois acertei num ângulo que ainda não tinha explorado. A história dos lobos portugueses é a história de um país escondido, à vista de toda a gente. Dos animais cada vez mais ameaçados, de um mundo rural em decadência, de uma ideia de progresso que leva autoestradas para aldeias onde já não vive ninguém. Chamei-lhe Malditos, História de Homens e de Lobos. É um texto curto e uma edição acessível, com uma belíssima capa de André Carrilho. E é o relato de um tempo que está a chegar ao fim. Há cada vez menos lobos nos montes e cada vez menos homens nos vales e, nesta ideia de progresso do país, não há espaço nem para uns nem para outros.

O livro é um conjunto de quatro reportagens – lobos, homens, guerra, paz. Podem ser lidas independentemente, mas é no conjunto que se percebe a verdadeira dimensão do problema. Para escrevê-las voltei a Covas do Monte, estive em Paredes de Coura, Arcos de Valdevez, Montalegre. Em algumas zonas o lobo sempre esteve ali. De outras ele tinha desaparecido há décadas e agora voltara. Mas em todas encontrei a mesma raiva secular dos pastores, a mesma dança entre homens e feras. São inimigos, sim, mas é quase como se precisassem um do outro para saberem quem são.
RICARDO J. RODRIGUES