O seu filho, esse músico ansioso por aprender

Primeiro vem o cantar para a barriga da mãe, estimulando o bebé ainda antes do nascimento. Segue-se o palrar, a imitação de sons e a aprendizagem de um instrumento. No desenvolvimento infantil – ao nível motor, da aprendizagem, da socialização ou dos afetos – a música pode ser o melhor professor.

QUEM É PEDRO ALVES DUARTE?
Estudou guitarra no Hot Clube de Portugal (e toca desde os 4 anos). Licenciado em Performance de Música Criativa na Universidade de Falmouth, Inglaterra, e mestre em guitar performance pelo Berklee College of Music, em Boston, EUA. É professor, fundador e diretor da Escola de Música do Monte Abraão (EMMA) e compositor e guitarrista da banda Kilindo.

Vários estudos apontam a contribuição da música na organização da memória, da perceção e do pensamento nas crianças, além de um raciocínio matemático superior. Que relação é esta?
_Tal como um taxista tem uma noção espacial acima da média e fica com o hipocampo muito desenvolvido – o hipocampo é uma estrutura situada no lóbulo temporal central do cérebro, associado à memória de longo prazo e à navegação espacial –, no caso da música tem a ver com a capacidade de o cérebro conceptualizar. Existe uma substância lipídica proveniente de algumas células do hipotálamo, a mielina, que funciona como isolador neuronal e reveste as fibras nervosas responsáveis pelos impulsos elétricos que determinam a aquisição de habilidades. No livro O Código do Talento [ed. Livros d’Hoje], Daniel Coyle explica como pequenas bolsas de formação podem criar talento real em qualquer parte do mundo, seja a jogar futebol no Brasil ou numa escola de música em Inglaterra, de onde saíram a Amy Winehouse ou a Jessie J.

Quer isso dizer que o talento não é só inato, também se desenvolve…
_A convergência de uma dose adequada de prática, motivação e orientação desencadeia o crescimento da mielina, a tal fibra nervosa que acrescenta precisão e velocidade aos nossos pensamentos e movimentos. Relativamente à aprendizagem das crianças, o que sucede em termos concretos é que a metodologia de trabalho é totalmente diferente. Para aprenderem uma passagem têm que se automotivar e querer trabalhar. Chegadas a dado obstáculo, têm que vencer o cansaço e arranjar metodologias para passarem daquele compasso para o seguinte. E ninguém lhes explica isto: é algo que descobrem por si e lhes permite fazer depois uma migração dessa estrutura de aprendizagem para as outras componentes da vida. Não sugiro que irão todos ser músicos profissionais, não é isso. Há um estudo que diz que dois terços da população têm apetência musical, um sexto tem algum potencial e o resto não o tem de todo.

É muita gente no mundo com capacidade musical…
_Daí a música ser tão aceite. Isto mexe com as pessoas. Num estudo norte-americano puseram algumas crianças a ter formação musical criativa, a par de outras que não a recebiam, e após oito meses notou-se logo diferença nos eletrocardiogramas face aos impulsos neurológicos que emitiam. Essa criatividade é muito importante. Acredito que as crianças convidadas a improvisar desde cedo aqui na escola terão uma capacidade incrível de concretização nas suas vidas, por estarem a trabalhar várias componentes. Estão integradas numa turma em que são chamadas a dividir tarefas. Desenvolvem a ética de trabalho. A música é muito causa e efeito: se trabalharem em casa têm frutos, e na aula seguinte comparam-nos com os outros em grupo. Pode ser difícil explicar-lhes este nexo de causalidade em certas áreas, mas na música é fácil porque o experienciam. Depois há obviamente resultados mais positivos e outros menos, como em tudo.

Mas há sempre uma potenciação?
_Estudos comprovam que nos primeiros quatro anos de instrução musical se ganha sete a dez por cento de Quociente de Inteligência (QI). Pensando num QI de 137, que passa a 150 com mais aqueles dez por cento em cima, é a diferença entre ser-se muito esperto e genial. Uma criança pode entrar em medicina com esse acréscimo. Ter média de 19 em vez de 16 e ser o que quiser. A criatividade e a improvisação fazem uma grande diferença, e quanto mais cedo melhor. Daí a necessidade de abrir esta escola há quase sete anos. Ainda não é igual às dos EUA ou ao Instituto de Música Contemporânea em Inglaterra, em que só o edifício faz oito deste e tem 900 alunos, como na série Fama. O conceito de música contemporânea e comercial ainda não está desenvolvido no país, mas durmo todos os dias com a convicção de que vim agitar um bocadinho as coisas.

Platão tinha razão ao afirmar que a música é a ginástica da alma?
_Muita. Na Grécia Antiga era tida como disciplina clássica, a par da astronomia ou da matemática. Aristóteles dizia que «somos aquilo que fazemos repetidamente. A excelência não é resultado de um modo de agir, mas de um hábito.» Na música temos três componentes importantes: a motora, inerente a tocar um instrumento; a da perceção, que é a parte espiritual e sensível que nos permite interpretar bem um tema e exprimirmo-nos de forma a criar emoção nos outros; e a componente ligada à metodologia de trabalho e à inteligência. É certo que o trabalho rítmico desenvolve capacidades matemáticas devido à sequenciação. Também é certo que os cantores desenvolvem outras apetências sociais. Guitarristas e violinistas ampliam o awareness, uma apetência muito mais ligada ao estado de alerta e à atenção.

A apreciação ativa de música também potencia a aprendizagem cognitiva, mesmo que não se toque um instrumento?
_Os estímulos cerebrais são bastante intensos ao procurar entender-se a forma da composição, perceber as nuances. Os bebés respondem de imediato a qualquer estímulo musical que lhes dermos e essa será a aculturação que irão ter naturalmente. Ouvir música também potencia a aprendizagem cognitiva pela facilidade que eles depois vão ter a comunicar verbalmente, o que lhes dará muitas mais ferramentas para o futuro. Temos na EMMA música para bebés e a ideia é estimulá-los a palrar, a imitar sons. Os pais podem fazer isso em casa cantando para eles, de preferência depois de receberem alguma orientação. A voz é um instrumento ao alcance de todos e estreita laços entre pais e filhos ainda antes do nascimento.

A partir de que idade se pode começar a aprender?
_Aqui na escola começamos aos 4 anos a ensinar a cantar e a tocar um instrumento ao mesmo tempo. Oito semanas chegam para fazer a diferença, nessa idade as crianças têm um desenvolvimento sensorial incrível. Tenho pais que agradecem: as notas sobem, o comportamento muda radicalmente, os miúdos ganham disciplina, inteligência, sente-se vida neles. Ficam ávidos de conhecimento graças à capacidade neoténica de aprenderem a brincar, tão desenvolvida que os seus sistemas produzem dopamina diante de tudo o que é novo. O que os pais não sabem é que mais tarde, aos 15 ou 16 anos, os filhos vão querer viver da música e é uma chatice. Este país não é para músicos. Temos um mercado demasiado pequeno e é necessária muita convicção para singrar.

No Japão e nos países nórdicos a música tem lugar de destaque nos currículos. Como é em Portugal, ao nível do que se ensina e da própria formação dos professores?
_O jazz já conquistou uma parte do ensino, a clássica também e são ambos muito bons. Na música moderna não existe, não temos aulas no ensino articulado nem no superior, e a qualidade da música nacional reflete essa falta. Como é que vamos conseguir que a nossa música popular comercial se desenvolva? Com que ferramentas? Também a nível da formação dos professores de música popular estamos mal: por norma, quem dá as aulas são músicos de outras áreas musicais, que depois têm um gosto tão grande por música contemporânea que a desenvolvem por si. Mas não precisamos dela, certamente. Somos maiores do que o Japão, a Suécia, a Finlândia, a Inglaterra, os EUA… Para quê investir na cultura?

A música também reforça o desenvolvimento afetivo, além da aprendizagem cognitiva?
_Também. Os próprios pais aprendem e vibram com a evolução dos filhos. Além de ser uma ferramenta de inclusão sociocultural e de desenvolver largamente a inteligência emocional, pela forma como as crianças conseguem passar os obstáculos e lidam com eles internamente. Quando tentamos entender uma passagem que não está a correr bem, como se ultrapassa aquele desafio? Como é que o ego lida com isso? E depois há ainda a observação dos outros, a componente emocional quando se está em banda e são todos alunos ao mesmo nível: eles aprendem imediatamente a sair da arrogância da imposição para começarem a negociar. Eu acho que a música só faz mal quando é em demasia, como no meu caso: apenas um maluco passa dez horas por dia a tocar guitarra. De resto, nunca devemos impedir uma criança de se expressar musicalmente. Temos muito aquela coisa do «Não faças barulho, olha as pessoas, não batas com as mãos na mesa», mas é deixá-las cantar e dançar o que quiserem e vão ver resultados tremendos. Quem sabe quantos génios musicais não ficaram privados de um sonho porque foram limitados?