O novíssimo tempo do sei lá…

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Neste ano, no outono metralharam-se esplanadas de Paris. Neste ano, sublinho, porque já houve outros, 1950, por exemplo, em que Robert Doisneau, de uma esplanada parisiense da Rua de Rivoli, disparou a foto O Beijo do Hôtel de Ville. Ele há coisas que se devem lembrar, senão um dia esquecemos para que serviam as esplanadas. Neste ano, nas vésperas de Natal, as temperaturas eram amenas como nunca – não exagerando, como desde 1659, quando dos primeiros registos meteorológicos europeus, na Inglaterra Central (Londres). Sendo o tempo a memória que mais depressa se esquece e como este fim de semana é de frio e chuva, o leitor talvez já tenha esquecido mas, há dias, os botões das cerejeiras adiantaram-se quatro meses e floresceram. Estamos assim, estranhos.

Há dias, na lisboeta Praça da Figueira, vi um Pai Natal todo ele estranho. Era negro, era magro e era cego. O resto era quase conforme à tradição: as roupas vermelhas e brancas estavam sujas e ele cantava mal. Tinha uma guitarra que não dedilhava, espanava o pó das cordas, e o seu White Christmas não era o mesmo de Bing Crosby. Suspensa do braço da guitarra havia uma garrafa de plástico, cortada a meio corpo e também de cores natalícias – oferecia-se para receber as ofertas dos amáveis ouvintes. Pus lá uma nota de dez euros, dobrada. Entretanto, o Pai Natal fazia uma pausa, passeou os olhos por onde eles não chegavam, ao castelo, a um céu de verão, às gaivotas…

Voltei atrás para o prevenir. A abertura da garrafa estava muito exposta, qualquer um podia tirar o dinheiro, disse-lhe eu. «Não faz mal, também não está a dar muito. Pff…», respondeu, com um muxoxo. Os angolanos já exportaram esta forma vocal de se mostrar resignados, um cuspir para dentro, mais som do que outra coisa, e cantos de boca de desdém. É mais uma declaração do que um sentimento, e é sobretudo um estado de alma muito transitório. O Pai Natal cego atacou o Jingle Bells, assumiu que a guitarra não servia para nada e, enquanto esganiçava «jingle all the way…», rapou a nota, a única da garrafa, nem a desdobrou e pô-la no bolso do casacão vermelho. Estamos assim, céticos e aceitando o que nos chega.

Houve um tempo da minha vida em que uma coisa era certa: o que vinha era melhor. Também da geração baby boom, nascido quando todos desataram a fazer filhos no fim da II Guerra Mundial, mesmo os que não a fizeram, convenci-me de que isto ia irremediavelmente em frente. Num país estrangeiro onde vivi, cheguei a apregoar um jornal cujo título era, lá na língua deles: O Que Nós Queremos? Tudo! E as ilusões eram tão grandes como os títulos dos jornais. Não que os factos tentassem mentir – quando eu apregoava aquele jornal, não tinha emprego e tinha documentos provisórios –, mas lá está, eu era otimista e a convicção estava feita. Isto ia. Depois vieram outras gerações. E o futuro deixou de ser como antigamente.

Houve uma altura, com a guerra da Jugoslávia, em que o delírio feliz deu a volta ao prego. A guerra voltara para onde já tinha sido abolida, a Europa, e em forma de guerra civil, a mais ultrajante. O culminar foi com o espetacular cair das Torres Gémeas, como se Hollywood quisesse patrocinar o desastre anunciado. Enfim, depois do beijo na boca, o murro nos dentes. Da imaginação sem balizas para a catástrofe. Reparem, um e outro tempo, tão opostos, traziam ambos uma certeza: um, que isto ia para melhor; outro, que isto ia para pior.

O que eu quero anunciar nesta crónica é que entramos num tempo novíssimo: o do sei lá. Não dá para entender nem prever. De tiros em esplanadas parisienses e botões de cerejeiras no Natal. Tempos de adotar a filosofia do Pai Natal negro, magro e cego. O que vier, virá. E quando vier, metemos no bolso.

[Publicado originalmente na edição de 27 de dezembro de 2015]