Há algo muito arrojado numa nova campanha que para aí anda. «Mais varandas, menos marquises», diz o slogan. E a imagem mostra uma varanda bem cuidada, janelas brancas e um espaço aberto com plantas, chapéus de sol, mesas, cadeiras, espreguiçadeiras e até um armário de prateleiras para arrumar… plantas. Um mimo onde apetece passar uma tarde a ler um livro. À volta dessa varanda solitária, marquises. Um prédio normal das nossas cidades – centro e periferia: todas as varandas foram substituídas por quadrículas de vidro e alumínio. Todas diferentes umas das outras em cor, formato, número de portadas. Como se um matemático louco tivesse desenhado o cenário.
O que é arrojado na campanha do Ikea é que normalmente as publicidades que nos tentam vender algo fazem-no ao fio do pelo. Não nos contrariam. Quer dizer, pelo menos não nos atiram coisas à cara. Ora esta é diferente. Está o tuga muito contente com a sua marquise que lhe dá para arrumar os sapatos malcheirosos do filho, as roupas da outra estação e mais umas quantas quinquilharias e ainda tem uma estufazinha para secar a roupa, e vem uma marca sueca armada em esperta dizer-lhe o que devia fazer com aquele espaço? “Eh, vocês aí em baixo, bafejados pelo sol e pela sorte, arranquem lá essa estupidez das vossas marquises, aproveitem a luz e vamos pôr flores nas janelas!” Ora! Que despropósito! Aquele espaço é dele. Conquistou-o ele. Ao arquitecto que desenhou o prédio – e que desperdiçara aquele retângulo. Aos vizinhos, dando-lhes as costas, os vidros, as cortinas em vez de flores. À cidade, impondo o seu alumínio. À lei, borrifando-se para as regras de ordenamento.
Aposto com o Ikea que nenhum português que tenha transformado a sua varanda em marquise o fez achando que era melhor ter uma varanda que uma marquise. Por isso não entendo esta campanha. Mas, mesmo não entendendo, espero que surta efeito. Espero que dê um rebate de consciência a todos os que fecharam as varandas em marquises. E as devolvam à liberdade, às flores e às coisas bonitas. Esta é, simultaneamente uma das lutas da minha existência urbana e um dos maiores mistérios da minha vida. Percebo o contexto: anos 70, 80, as pequenas e mal jeitosas casas portuguesas, a falta de espaço quando a família cresce. E até consigo entender que alguém alargue um quarto e abra uma parede para ganhar mais dois preciosos metros quadrados numa casa de classe média. O que nunca entendi é porque é que se abdica de um espaço de ar livre dentro de casa para o tornar, na melhor das hipóteses, uma despensa, na pior, nada? À minha frente tenho um prédio nada classe média, casas de mais de 150 metros quadrados e seis assoalhadas. Nove andares. Apenas um não tem varandas fechadas.
As marquises portuguesas – raras na Europa e bastante terceiro-mundistas – combinam a noção da fraqueza da lei e da sua regulamentação, a falta de sentido cívico e o egoísmo lusitano, a pouquíssima sensação de pertença a uma comunidade e, no final disto tudo, uma enorme estupidez. As varandas foram inventadas não só para tornar mais agradável a experiência de viver num apartamento, e torná-lo próximo de uma casa individual, mas também para afastar as humidades, moderar o calor e o frio. Ao fechá-la o tuga está apenas a criar um microclima que lhe dá cabo do ambiente da casa. Para além, obviamente de afastar a luz.
A campanha do Ikea toca num dos flagelos das nossas cidades. Várias câmaras já tentaram regulamentar, ordenar, organizar a coisa. Da Amadora a Oeiras. Sem sucesso. Se calhar era mesmo preciso virem uns suecos pôr o dedo na ferida.
[Publicado originalmente na edição de 22 de março de 2015]