Julgando que sabia o que a esperava por ter uma irmã muito mais nova, a dura realidade da maternidade apanhou Filipa Fonseca Silva de surpresa. Entre a dor de amamentar e o amor absoluto, escreveu Coisas que Uma Mãe Descobre (ed. Bertrand) para explicar o porquê de nada ser como nos filmes.
QUEM É FILIPA FONSECA SILVA?
Licenciada em Comunicação Social e Cultural pela Universidade Católica, tornou-se publicitária em 2004. Aventurou-se na escrita sete anos mais tarde com Os 30 – Nada é Como Sonhámos, cuja versão inglesa fez dela a primeira autora portuguesa a atingir o Top 100 da Amazon. Adora pintar, sapatos e melancia. Natural do Barreiro, vive em Lisboa com o marido, os filhos e o gato Gucci.
Afinal, que coisas são essas que uma mãe descobre e de que ninguém fala?
_Quando uma mulher engravida tem sempre muitos livros à disposição, muitas conversas a prepará-la para isto e para aquilo, mas depois há imensas coisas que só passando por elas é que sabemos. Cheguei a comentar com o meu marido por que raio é que os nossos amigos nunca nos disseram que é impossível manter a roupa e a casa limpas com uma criança de dois anos! Há sempre migalhas no chão, uma mão pegajosa que se cola à nossa saia, e disto as pessoas não falam. Foi o que me levou a escrever as crónicas no blogue quando o meu filho nasceu, em 2012. Avisam-nos que é difícil dormir, há bebés que têm cólicas, deixamos de poder fazer o que fazíamos antes, mas omitem-nos estes pormenores do dia-a-dia, bastante humorísticos porque todos os pais se reveem neles.
Já tinha sido quase uma mãe para a sua irmã, 12 anos mais nova. Viveu todas as coisas boas e também as doenças, as birras, as manias. O que houve de tão diferente quando teve os seus dois filhos?
_A minha experiência com a minha irmã era mais de baby-sitter: em bebé, estava sempre a pedir à minha mãe que me deixasse mudar-lhe a fralda, dar-lhe banho, aprendi a dominar toda essa parte da puericultura; mais tarde ficava com ela para a minha mãe ir jantar fora, ou ia eu às festas de Natal se ela não podia. Mas depois a minha mãe chegava e eu desligava. Ia à minha vida, dormir as minhas oito horas diárias. O cansaço acumulado, as preocupações, a sobrecarga de tarefas que de repente recaem sobre nós na gestão de se ter um filho, pertenciam à minha mãe. Por mais experiência que tivesse com a minha irmã, passar a ser eu a mãe foi totalmente diferente.
Precisamente porque a maior parte da carga vai parar aos ombros da mulher?
_Também. Digo muitas vezes isso ao meu marido quando ele me pergunta por que razão estou tão stressada e cansada. Ao que lhe respondo que já não tenho que pensar apenas se temos leite no frigorífico, e sim se há sopa feita, fraldas, toalhetes. Penso no que lhes vou vestir amanhã, se está frio, a chover, se vão agasalhados, se não me esqueci de lhes guardar o brinquedo no saco. Estamos sempre focadas em pormenores com que o pai nem sonha, por muito que queira ajudar. Nunca desligamos. E essa é outra coisa para a qual ninguém nos prepara: por mais sobrinhos que tenhamos, por mais que convivamos com crianças a vida inteira, não tem nada a ver.
Agrupou as grávidas em sete grupos distintos: a Brávida, a Mártir, a Enciclopédia, a G.I. Jane, a Grávida Desde que Nasceu, a Hippie e a Chorona. Que tipo de grávida foi?
_As minhas duas gravidezes foram muito diferentes, com partos diferentes e bebés diferentes. Na do Tiago fui uma Chorona, emocional ao máximo: chorava a ver séries na televisão, a ouvir uma música que passava na rádio; o meu marido dava-me flores e eu chorava; partia um copo e chorava. Na da Carlota, talvez por ser a segunda, fui uma Brávida: insuportável, sempre de mau humor e a mandar vir com toda a gente nas filas prioritárias, quase a roçar a má-criação e sempre com duas pedras na mão prontas a atirar.
E que tipo de mãe é agora?
_Acho que sou uma Mãe Descontraída, umas vezes com uns laivos de Aleijada – quando mando palpites e mostro que os meus métodos são os melhores –, outras vezes com uns laivos de Hipocondríaca – eles espirram uma vez e já estou a sonhar com uma nova constipação, ainda por cima este inverno estiveram doentes a maior parte do tempo. Obviamente que isto são caricaturas e podemos identificar-nos mais com uma, mas se calhar há mães que têm um bocadinho de todas. Por vezes também tenho a minha veia de Mãe Hippie, que gostava mesmo era que eles andassem nus pelos cantos, a pintarem livros com tintas naturais e a fazer yoga. Mas depois os avós dão brinquedos de plástico, e as peças de Lego e o iPhone são de plástico, e as coisas de que eles mais gostam são de plástico, de modo que isso também me passa depressa.
Existe um pouco de Mãezilla em cada mulher depois do nascimento?
_Acredito que sim, quando perdem a paciência. Podemos não ser Mãezillas por natureza, mas há ali um momento em que nos transformamos e depois vamos para a cama a pensar: «Bom, se calhar exagerei um bocadinho.» A minha filha, então, está sempre a desafiar-me. Só tem um ano, mas muito daquela mania de mulher: «Eu faço o que quero, eu consigo fazer.» Às vezes temos mesmo que ser mais duras. Um pouco de disciplina não faz mal a ninguém, pelo contrário.
Em conversa com a Cristina Ferreira no Você na TV (TVI), tornou-se um tópico de grande discussão no Facebook ao dizer que nos sentimos «autênticas vacas a amamentar». Porquê esta indignação se uma mulher assume que não gosta?
_Além de haver o movimento – e acho bem que haja – de aconselhar as mães a darem o leite materno, tudo o que tem a ver com a maternidade ainda é muito endeusado, nomeadamente a figura da mãe. Há mulheres que depois de serem mães mudam de postura, acham que já não podem vestir um biquíni, usar um decote, pôr uns stilettos. Porque não? Se a mulher era assim antes e isso a faz sentir-se bem, porque é que agora tem que usar roupa larga e chinelos? Há esse endeusamento da mãe. E dos filhos: se são a melhor coisa do mundo, então não se pode dizer mal de nada relacionado com eles.
Um desabafo torna-se quase um sacrilégio…
_Como na religião. Nenhuma mulher afirma que gosta de tirar férias sem os filhos com medo de que os outros a julguem uma péssima mãe. Tal como não deixa de amamentar, mesmo que não goste, o que não significa que tenha que fingir que é tudo maravilhoso. Curiosamente o que eu senti, mais do que os ataques das fundamentalistas da amamentação, para os quais já estava preparada, foram as mensagens a agradecer-me por falar destas coisas. Disso não estava à espera: centenas de mulheres agradecidas por alguém vir dizer que nem tudo é cor-de-rosa. Que silenciam, em pleno século xxi, o facto de que o casamento muda, a vida muda, há momentos difíceis. É muito triste sermos atacadas por opções que apenas dizem respeito ao casal.
Em que é que o sexo pós-parto se compara com os muffins do IKEA?
_Cada vez que lá vou só penso: «Eu não quero engordar meio quilo, porém quero desesperadamente um daqueles muffins maravilhosos de chocolate ou cheesecake.» Não quero, mas quero. É como o sexo após o primeiro mês de resguardo nesse sentido: por mais que tenhamos vontade de recuperar a vida sexual, por mais que a discutamos com a obstetra, estamos cheias de medo da dor, de saber se vai ser bom, se vai ser igual. Queremos experimentar outra vez e ao mesmo tempo não queremos, devido a esse medo de que a coisa não resulte. E esta é outra coisa que as mulheres devem saber e ninguém lhes conta: não é igual. Voltará a ser, mas não nas primeiras vezes em que a lubrificação é diferente e existe receio e muito cansaço à mistura.
Baba, leite, papa, fruta e bolsado obrigam a mudanças drásticas na vida de uma mulher?
_Completamente. As crianças sujam muito e estão sempre de volta de nós. Temos que estar preparadas para chegar a uma reunião e alguém perguntar: «O que é que tens aí?», e sabermos reagir nesse instante ao facto de haver banana esmagada na camisa. O Seinfeld dizia que ter uma criança de dois anos é o mesmo que usar o liquidificador sem tampa todos os dias e confirma-se. Temos que ter sempre um kit de emergência preparado com fraldas, chuchas, mudas de roupa, chapéus, protetor solar e um pacote de bolachas, dado nunca sabermos o que vem a caminho. E toalhetes. São os melhores amigos da família.
Porque é que os pais não percebem que ser a melhor coisa do mundo é diferente de ser o melhor do mundo? São raros os que não comparam os seus filhos com os dos outros…
_A maioria projeta-se nos filhos e não consegue vê-los como os seres individuais que são, embora a adolescência se encarregue dolorosamente de nos ensinar essa independência: vão-nos querer longe e pensar que nos odeiam, tanto quanto agora nos amam. Existe a tendência para conjeturar que se o meu filho fez isto, então eu sou um ótimo pai, que o ensinei e o pus no mundo, dei-lhe os meus genes, por isso é tão esperto que ainda só tem um ano e já sabe fazer chichi sozinho. As pessoas têm algum pudor de competir umas com as outras pelo melhor carro ou a melhor casa, afinal não estamos na escola primária. Mas depois com os filhos há ali uma hipótese de se evidenciarem.
Cada etapa como mãe é mais difícil do que a anterior? Até o nosso bebé querer explorar o mundo sem nos ouvir e fazer o coração saltar-nos de vez do peito?
_Sempre ouvi os mais velhos dizerem que «filhos criados são trabalhos dobrados». Acho que uma mãe nunca mais se liberta do sentimento de ter ali alguém a quem proteger, mesmo que o filho tenha 30 anos. E acho que as fases vão sendo sucessivamente mais difíceis porque os perigos são maiores à medida que eles descobrem o mundo: numa idade são as tomadas e as varandas, noutra são as drogas e as idas para a praia às escondidas. Sou muito maternal em relação à minha irmã e lembro-me de que ficava apavorada quando ela aprendeu a conduzir e ia sozinha à noite não sei para aonde. Com os meus filhos passei a andar com o coração nas mãos. E a não querer que o tempo avance depressa demais, porque hoje caem a andar, mas amanhã vão querer correr.
O melhor do mundo são as crianças?
_São. Sempre adorei crianças, mesmo antes de ser mãe. Toca-me aquela inocência com que se entregam às coisas, a capacidade de acreditarem nos outros sem estarem sempre de pé atrás, que é algo que nos vem com a idade. Há tempos li um artigo em que um irmão muito mais velho contava ao mais novo, de oito anos, que era gay. E perguntou-lhe: «Sabes o que é isso de um homem gostar de outro homem, ou uma mulher gostar de outra mulher?» E ele respondeu: «Sei, é amor.» Os miúdos dizem estas coisas. Devia haver um serviço educativo obrigatório que permitisse aos adultos passar nem que fosse um dia por semana com crianças. Elas ensinam-nos tanto a voltar a valorizar as pequenas coisas a que deixámos de ligar que quase sentimos vergonha. Os meus filhos ficam extasiados com uma joaninha e eu, se fosse preciso, enxotava-a antes de aprender a ver o mundo com os olhos deles. No livro digo isso: o coração de uma mãe é elástico. Elástico até ao infinito, porque o seu amor cresce, cresce, cresce e nunca mais acaba.