O bom filho à terra torna

João Pedro Plácido venceu o DocLisboa e arrecadou elogios em Cannes. Conta agora a história de um pastor que se recusa a abandonar a aldeia minhota onde cresceu – aldeia que por sinal é a do realizador também. O filme chama-se Volta à Terra, tem estreia nesta semana e é um dos mais humanos e desarmantes retratos rurais do país.

Na terra como no céu. É nisso que pensamos quando estamos a quase mil metros de altitude e chegamos ao lugar da Uz, vindos de Cabeceiras de Basto. A estrada é longa, íngreme e sinuosa. A vista, deslumbrante do cimo da Senhora da Graça, oferece fogachos de nuvens até atingirmos um concentrado de casas de granito. Há alguns meses que João Pedro Plácido não voltava à terra. Foi aqui que realizou o documentário que é o espelho da sua infância: a mãe tem cá uma casa e todos os verões foram passados nesta terra, onde a agricultura e a pecuária ainda são a realidade maior.

Um ano na vida de Daniel. É essa a história de Volta à Terra, centrada num jovem agricultor de 24 anos que decidiu não sair do lugar onde cresceu. Uz, lugar (e não aldeia) de uma beleza balsâmica e incomensurável, é uma lança de fé nos valores do apego aos locais da nossa origem. Quem vir o filme vai apaixonar-se por Uz e ficará cidadão honorário. O realizador lembra-se dos verões que aqui passava, quando a população ultrapassava a centena. Agora são pouco mais de cinquenta.

Uma das forças do filme centra-se no drama de Daniel Pereira em não conseguir encontrar rapariga para namorar neste local tão remoto. Que este infortúnio romântico seja tratado com um naturalismo subtil é uma das provas maiores do humanismo do documentário. A questão fulcral do filme não está em sacar clichés do «exotismo» ou do isolamento. «Nunca aqui vi miserabilismo», diz o realizador «As pessoas vivem do gado e das cabras que criam, em sistema de autossubsistência. O problema em Portugal é associar isso aos novos fricks e a toda a conversa do biológico. A mim faz-me confusão essa conversa toda do biológico.»

João Pedro vai cumprimentando quem passa. É assim quando volta à terra. Foi em Uz que o agora lisboeta ainda chegou a pensar viver, há uns anos. Em 2012, aquele ano em que os cortes económicos ameaçaram o cinema português. Pensou e viveu durante quatro meses. Antes da rodagem, passou lá algumas temporadas para, juntamente com a cineasta luso-francesa Laurence Ferreira Barbosa, escrever o argumento para o documentário que sempre quis fazer: o filme sobre a terra que sempre amou. O resultado está a correr bem: o filme venceu o DocLisboa, esteve numa série de festivais internacionais e até foi a Cannes com sucesso na secção paralela ACID. Quem diria? Uz no maior festival de cinema do mundo.

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Menos de cinquenta pessoas vivem agora em Uz. O realizador passou lá algumas temporadas para terminar o argumento do filme, que já passou por vários certames internacionais de cinema.

«Em Cannes conquistaste muitas fãs», diz a Daniel. No Cinema São Jorge, durante o Doclisboa, o pastor esteve tímido no palco do maior cinema da capital. Depois lá se começou a soltar e a habituar aos deveres de estrela de cinema, quando chegou ao Rivoli, na apresentação no Festival Porto/Post/ Doc. «Fui fazendo este filme porque sempre confiei no Pedro. Nunca pensei em ficar famoso. No outro dia, como o filme passou no festival em França, apareci no jornal de Cabeceiras de Basto. Se as pessoas agora me ficaram a conhecer é coisa que não me preocupa. Quem vir este artigo e quiser cá vir, é bem-vindo!» E depois grita para as vacas.

E o que mudou depois das filmagens, concluídas em 2013? Plácido é desmancha-prazeres: «Nada, não mudou nada.» Daniel continua solteiro e bom rapaz com o drama de não encontrar moça? «Vou continuar a procurar rapariga até morrer.» E continua a gostar de viver e trabalhar sem férias neste local onde faz frio durante dez meses e inferno de calor durante dois. «Agora vendi as minhas ovelhas. No futuro, vejo-me com mais duas cabeças de gado. Quando for mais velho, espero ter a minha família e a reforminha.»

Daniel acorda de madrugada, trata das vacas e ainda consegue ajudar quem precisa. Em Uz, todos se ajudam. É terra de partilha. Percebemos isso quando o realizador cicerone nos apresenta o outro protagonista do filme, um dos anciões da terra, o Sr. António, septuagenário de humor cortante que vive numa casa por cima do seu gado, no piso térreo. O carisma é o mesmo que lhe reconhecemos no filme. E de que o realizador se lembra bem – num certo dia de filmagens, o Sr. António ficou fulo quando, acidentalmente, um elemento da equipa afastou um boi do caminho. Oferece um copo de verde tinto minhoto quando Plácido lhe dá o raspanete da ordem: «Não foi ao Porto ver o filme!» «Não posso sair daqui, estou preso pelos animais», responde. E tem pouca mão-de-obra para o ajudar. «Não vi o filme. Portanto, não gostei nem desgostei.» Pode ser que o veja agora, na possível sessão especial em Cabeceiras de Basto, em agosto.

O «menino» Pedro é filho acarinhado da terra. Joaquina, a sorridente e carinhosa avó de Daniel, vai mais longe e diz que é uma maravilha o que o filme está a fazer pelo neto e pela terra. O mesmo diz Manuela Magalhães, professora de Português do secundário (dá aulas em Cabeceiras de Basto, a 18 quilómetros), exemplo de que mesmo com um curso superior há sempre quem queira voltar à terra. «O filme mostra-nos que é um erro as pessoas terem aquele preconceito em relação às aldeias, sobretudo quando pensam que são todos uns parolos. Ajuda-nos a perceber que na cidade e na aldeia as vidas são diferentes, mas não têm de ser piores ou melhores. Agora, todos comentam e fazem-me perguntas sobre Uz por causa do filme… O facto de morar aqui fazia confusão a muita gente.»

Num almoço com Daniel e o pai, Plácido começa a tentar o protagonista com um possível convite para o Festival de Cinema do Rio de Janeiro. «Prepara-te para seres aclamado no Brasil!» Daniel abana a cabeça mas percebe que a hipótese é real e até cora. «A primeira vez que vi o filme ri-me dos espalhafatos que fiz! Não estava à espera que saísse assim: mostra aquilo que aqui fazemos.»

Antes de conquistar o subsídio do Instituto do Cinema e Audiovisual que lhe permitiu estar 13 meses a rodar em Uz, João Pedro Plácido só não ficou a viver na aldeia porque não consegue estar sem filmar. Aos 36 anos, quer continuar a viver do cinema, de preferência como diretor de fotografia, a sua verdadeira arte. A realização aconteceu porque filmar Uz era mais forte. «O que me levou a querer fazer este filme foi o sentimento de respeito e partilha pelo meio onde esta gente está. Sabem mesmo valorizar o que a terra tem, o que dá e o que tira.» Se regressar à cadeira de realizador será de novo para filmar a terra.