
Quase três anos e muitos concertos depois, é tempo de dar continuidade ao reportório da Deolinda. Quando nos perguntam se nos fartamos de tocar as mesmas canções, digo que não. É uma resposta sincera. Não me farto, porque lhes encontro sempre alguma novidade, por pequena que seja. Uma ligeira alteração na melodia, na dinâmica, ou o público, que é sempre diferente e reage de diferentes maneiras.
No entanto, o alinhamento (a sequência de músicas escolhidas para tocar no concerto) tem uma vida relativamente curta, não só porque se pode tornar previsível para um público que assista a mais do que um concerto mas também porque, se muito repetido, acaba por poder tornar o concerto num momento automatizado, sem espaço para a espontaneidade por parte dos músicos em palco.
Ora, a espontaneidade é possivelmente um dos factores mais importantes para criar momentos que perduram na memória e que tornam cada concerto um evento distinto. Daí que depois de três anos seja altura de trazer mais canções para o mundo da Deolinda. E a Deolinda tem já um mundo considerável. Andámos pelos cantos mais escondidos do nosso mundo, fizemos sempre a música que queríamos, sem nunca fazer concessões musicais ou artísticas e fomos muito felizes.
E agora é altura de nos lançarmos a este mundo desconhecido que é a gravação de um novo álbum. Outubro foi o mês escolhido, mas o processo de criação do mesmo já começou há muito tempo. Primeiro, na imaginação do Pedro, que criou as novas canções de há três anos para cá. Depois, no tempo que passámos, como banda, a burilar os arranjos de cada canção com o cuidado que um relojoeiro tem ao trabalhar, para não estragar a precisão do objecto de que lhe cabe cuidar.
Foram seis meses de ensaios, em que partimos pedra, como escultores, curiosos por saber qual a forma final daquelas canções. Escutámos atentamente dezenas de horas de ensaios para perceber se estávamos a trilhar o caminho certo, que outros instrumentos poderiam caber dentro de cada tema e deixámo-nos surpreender por aquilo que algumas canções nos pediam. Mas, como sempre, faremos o que elas mandam, mesmo que isso signifique que nos teremos de aventurar por onde nunca antes pensámos.
Entramos em estúdio no início de Outubro com as canções suficientemente maduras para serem registadas e suficientemente frescas para que a tão almejada espontaneidade possa aparecer e trazer soluções perfeitas no momento em que as registamos. São esses momentos por que tanto ansiamos e que nos deixam sempre com algum nervoso miudinho antes de entrar em estúdio: quando a canção fica registada com a melhor versão que alguma vez conseguimos.
Depois de tantos ensaios, sentir que foi em estúdio que melhor conseguimos tocar aquele tema é aquilo que procuramos. Será sempre frustrante sentir que o melhor take da canção ficou por fazer ou foi feito nos ensaios. Queremos sentir que o nosso desempenho foi o melhor que podia, que não ficou nada por dizer.
Quando isso acontece, as longas horas de um trabalho que exige a maior concentração mental e a maior precisão motora, as pausas entre cada canção para avaliar qual o melhor take, esmiuçando todas as nossas falhas, ouvindo todas as imperfeições, as noites mal dormidas, a pensar no que se fez e no que falta fazer, quando isso acontece, como dizia, toda a angústia acumulada transforma-se numa maravilhosa sensação de realização.
A prova maior será daqui a uns meses, quando vos apresentarmos as canções. Aí ficaremos felizes se gostarem delas. Mas por enquanto, no segredo do estúdio, o que nos interessa é que fiquemos nós felizes com o que ouvimos. Que seja agora.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
11-10-2015