Neste ano, ainda não era Carnaval nem era o dia da grande regata, neste ano, e de forma imprevista, vinha eu numa gôndola por um dos braços da lagoa de Veneza, num silêncio só cortado pelo remo preguiçoso, quando entre as paredes estreitas e húmidas surgiu um som. Um dia, de outro ano mais longínquo, comprei em Medellín um livro em páginas de mau papel, com as primeiras reportagens de Gabriel García Márquez. Uma delas era sobre um deslizamento de terras pela montanha, que soterrara uma aldeia no vale. Um camponês sobrevivente disse, do aviso de morte que descera para toda a família: «Era como uma telefonia mal sintonizada.» Desde aí, nunca mais me atrevi a definir um som.
Então, a longa proa entrou no Grande Canal, o som aumentava e eu entrava também no canalazzo, rumando ao Rialto, com as costas para o som. Virei-me e vi, entre a Praça de São Marcos e a cúpula branca da Igreja de Santa Maria da Saúde, vindo para mim, uma procissão de vaporetos e gôndolas berrando vermelhos e dourados, tudo suavizado e empolgado por um coro de ópera.
Não sei qual, a ópera. O cenário reconheci-o, era Canaletto, como gosto tanto de o ver, detalhado como sempre mas ainda mais porque monstruoso, do tamanho das frontarias e varandas encimadas por telhas, duplicadas na água como se o Grande Canal quisesse imitar o pintor, ondeando a mais bela, dramática e teatral das cidades. Sim, aquele palco eu já o conhecia pelas repetidas vezes que insistia nos mesmos caminhos, nas poucas vezes que estive em Veneza. Mas a precisão do quadro que não o era, a grandiosidade do cenário e o coro que se atirava às fachadas para eu o receber em estereofonia, isso, e o inesperado de tudo isso, aconteceu-me em cinco minutos deste ano. «Gracias a la vida…», como cantava Mercedes Sosa.
Neste ano, ainda, procurando numa noite tornar confortável um livro de mil páginas, li Papéis de Prisão, notas, quase sempre breves, de doze anos de cárcere. De Luandino Vieira. Um homem é o que é e entre as minhas circunstâncias está Luandino Vieira. Cruzei-me com ele só uma vez, sorri, não me atrevi a mais. Li, adolescente, Luuanda, e esse livrinho deu-me – peço desculpa a talvez quase todos os leitores, talvez todos, costumo obrigar-me a tentar escrever para todos e agora não o vou fazer –, esse Luuanda fez-me sentir «nós somos». Não senti isso muitas vezes na vida.
Então, a páginas tantas, neste ano, lendo os papéis das prisões de Luandino (tem 80 anos, entrou numa, em Luanda, aos 25 e saiu do Tarrafal aos 37) parei no episódio do casal que entrou separado no Pavilhão Prisional da PIDE em São Paulo, Luanda, 1963. Ela era bela, até tinha feito um filme em Lisboa. Os «inquilinos» experimentados, entre os quais Luandino, perceberam que ele e ela ainda não sabiam o outro também preso, e ali – os guardas, quando os levavam a interrogatório, tinham o cuidado de se desviar da cela do companheiro… Então, o escritor aproveitou-se de breve contacto com o novato para lhe dizer que a mulher dele também estava ali. Mas como avisar esta da proximidade do marido? Luandino sugeriu que ele aproveitasse a noite e cantasse alto. Ela iria reconhecer-lhe a voz… Então, nessa noite, numa prisão de bairro suburbano de Luanda, Angola, em 1963, um homem cantou Brave Margot, uma canção de Georges Brassens.
Dez anos depois, eu, que já perdera Brel (a sua última atuação ao vivo foi anterior à minha chegada a França, em 1969), estive numa sala pequena, a sul de Paris. No palco, só o contrabaixista do costume, Pierre Nicolas, e Brassens e a sua guitarra. Ele cantou também Brave Margot. Canção cocasse sobre uma camponesa marota. Ah, se eu soubesse o que neste ano soube… Saltava para o palco e dizia: na minha cidade, esta é, há muito, uma canção de amor. E eu nem queria palmas, apenas que se soubesse da vida.
[Publicado originalmente na edição de 20 de dezembro de 2015]