Navegar é preciso

Pepe Brix nasceu nos Açores e tem mais água salgada do que hemoglobina no sangue. Fotógrafo de terceira geração, decidiu fazer-se aos mares do Norte. Passou três meses e meio a bordo do Joana Princesa, um dos 13 navios portugueses que ainda pescam bacalhau na Terra Nova, no Canadá, e captou estas imagens. História de uma viagem que nunca terminou, e que valeu ao fotojornalista açoreano o prémio Gazeta 2015 na categoria de Fotografia.

Depois de passar três meses e meio no mar, um homem precisa de tempo. Pepe, que na verdade se chama Rui, só escolheu as fotografias que tinha feito a bordo de um dos últimos bacalhoeiros portugueses muito tempo depois de chegar a terra. Os homens com quem se fez à Terra Nova já o tinham avisado dessa circunstância. Há, no dizer das gentes de Ílhavo, três raças de homens: os mortos, os vivos e os marinheiros. Quando regressam de uma pescaria longa, o limbo torna-se claro como as águas do Atlântico Norte.

O Joana Princesa zarpou de Aveiro a 4 de fevereiro de 2014, com 34 homens a bordo. Pepe, que tem 30 anos e é fotógrafo, estava de tal modo interessado de passar uma temporada em mar alto que fez um curso de observador de pesca, era ele o operador da Northwest Atlantic Fishery Organization destacado para a viagem. «O meu trabalho era o de registar a quantidade de peixe capturado, fosse em peso vivo ou processado.» Responsabilidade elevada, que não interferiu com o registo documental que queria fazer do trabalho dos últimos bacalhoeiros.

O tempo foi essencial. Nas primeiras semanas nem sequer fotografou. A paciência, quando se fala de jornalismo, é toda uma arte. «Ao princípio fui tentando perceber as dinâmicas, os sítios marcantes onde queria fotografar, as coisas que aconteciam a bordo e justificavam o registo das imagens.» Já tinha três semanas de ondulação nos ombros quando disparou os primeiros cliques. E depois continuou sempre a fazê-lo, meio por defeito de repórter, meio para queimar tempo.

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É açoriano de Santa Maria e o mar é fascínio tão antigo quanto a fotografia. Os avós – ele alentejano e ela alemã – eram artistas de dois circos diferentes, que nos anos trinta se conheceram no Porto juntaram os chapitôs. Desaguaram em Lisboa e, um dia, foram atuar a São Miguel, nos Açores. «E então olharam um para o outro e decidiram que iam ficar a viver ali.» Paraíso na terra, rodeado de mar por todos os lados.

Pepe Brix, o original, era domador de cavalos, a mulher trapezista. Era talento parco para a vida no arquipélago, por isso decidiram abrir uma loja de fotos à la minute. Mas a II Guerra Mundial trouxe uma base aérea militar para a ilha vizinha, Santa Maria. «Os americanos queriam registos da construção e estavam sempre a pedir ao meu avô que fosse lá. Às tantas ele decidiu mudar-se de vez.» A Foto Pepe funciona em contínuo desde o final da década de quarenta. Primeiro o avô, depois o pai, agora ele. Todos, independentemente do nome, são Pepe para o resto do mundo.

O neto do fundador da loja começou aos doze anos a acompanhar o pai. As revelações na câmara escura e as poses de casamento foram aprendizagens adolescentes e, na viragem do milénio, fez-se ao Porto, para estudar no Instituto Português de Fotografia. «Percebi que o meu caminho estava na fotografia documental, em procurar pequenas histórias de pessoas simples que tivessem muitas camadas de leitura.» Fez interrails, viagens ao Leste da Europa, sempre a tentar enquadrar o que sentia. O espírito nómada era afinal herança genética. Mesmo agora, em Santa Maria, o terceiro Pepe precisa de um barco para conseguir respirar. O Ilha Azul é um veleiro de oito metros, onde ele passa as noites que pode e o mar deixa.

A obsessão com os bacalhoeiros é o outro lado da sua vertente marítima, e passou mais de um ano a frequentar cursos e preparar-se para embarcar. «Agora, olhando em retrospetiva, vejo que para mim foi uma experiência única, aconteceu uma vez. Mas a vida daquelas pessoas é esta, uma vida muito dura.» Meses depois de regressar a terra voltou a Aveiro para passar tempo com os seus companheiros de viagem. Os homens que fazem ao mar do bacalhau são quase todos das mesmas terras, Murtosa e Torreira. Quando a campanha do bacalhau termina, fazem-se à ria de Aveiro para apanhar berbigão.

Pepe divide a viagem em três fases. Há o tempo em que o barco viaja até à Terra Nova, três semanas com mar de inverno e o frio a entranhar-se cada vez mais nos ossos. Depois há toda a campanha. É atenção para os oficiais da ponte e músculo para a tripulação de convés. Turnos de seis horas, toneladas de peixe a descerem da rede aos alçapões, as saudades de casa e o sono. Depois o barco vai a St. John’s, no Canadá, e começa a preparar-se o regresso. É o entusiasmo e a força redobrada, os últimos dias de pesca em alegria, cada homem é uma terra.

Aqui está a história de uma viagem que, segundo Pepe Brix, nenhum homem poderá esquecer. Quando regressou a terra firme, a 19 de maio do ano passado, não poderia ser a mesma pessoa. As fotografias explicam melhor que quaisquer palavras a solidão e o companheirismo, a tensão e o esforço dos últimos portugueses que andam ao bacalhau. Daqui não saem mortos nem vivos. Saem marinheiros, que não são uma coisa nem outra.


Este portfolio, publicado na Notícias Magazine a 1 de março de 2015, valeu a Pepe Brix o prémio Gazeta na categoria de Fotografia.