«Nas urgências desembocam todos os problemas das pessoas»

Luís Campos é autor do Roteiro de Intervenção em Cuidados de Emergência e Urgência, entregue no final do ano passado como contributo para o Plano Nacional de Saúde. Especialista de Medicina Interna no Hospital de São Francisco Xavier, integrou a comissão técnica que esteve na origem da reforma das urgências em 2008, quando Correia de Campos era ministro da saúde. A organização dos serviços de urgência tem sido matéria de reflexão deste médico que é ainda presidente do Conselho Nacional para a Qualidade em Saúde.

A utilização das urgências tem grandes diferenças a nível regional, co­mo é referido no Roteiro de Intervenção em Cuidados de Emergência e Urgência. Na Região de Lisboa e Vale do Tejo há um maior recurso às urgências e uma maior percentagem de doentes de prioridades bai­xas. Isso explica que seja nos hospitais desta região de saúde que se registam mais longas esperas e mais casos de mortes?
_ Não há uma explicação simples para um problema complexo mas penso que é legítimo associar esses dois factos: os hospitais mais afe­tados são na região de Lisboa e é nesta região que há mais habitan­tes sem médico de família. Numa das áreas mais carenciadas, que é a região coberta pelo Hospital Fernando Fonseca, 60 por cento dos doen­tes que acedem à urgência são classificados com as cores verde e azul da Triagem de Manchester, ou seja, têm condições que, na gene­ralidade, poderiam ter sido resolvidas nos cuidados primários. Ago­ra, dizer que todas as variações estão relacionadas com o problema da falta de médicos de família, isso não é verdade. Há muitos outros fatores que explicam o excesso de procura das urgências em Portu­gal. De facto, a situação é diferente de muitos outros países. Inglaterra, por exemplo, tem metade da procura por mil habitantes.
E em relação a outros países europeus?
_ Em Portugal existe um maior recurso às ur­gências em relação a quase todos os países eu­ropeus mas, ao contrário de outros, onde tem havido um aumento, cá os números têm-se mantido estáveis, com variações sazonais que existem sempre, com uma tendência ligeira­mente decrescente nos hospitais públicos e um crescimento significativo nos privados.
As falhas a nível da resposta dos cuidados de saúde primários constituem o principal motivo para o recurso excessivo às urgências?
_ A falta de alternativas é uma das explica­ções, mas não é a única. A nível dos cuidados de saúde primários existem diferentes problemas: um deles é a fal­ta de médicos de família, o outro é termos centros de saúde a duas velocidades, uns que foram abrangidos pela reforma (unidades de saúde familiares) e outros que ainda não foram e que oferecem ní­veis diferentes de acesso ao médico de família, depois existem as re­duções no horário de abertura dos centros. Os próprios hospitais têm alguma responsabilidade e podem ajudar, abrindo vagas para doentes não programados nas suas consultas ou aproveitando me­lhor os hospitais de dia. Existem razões que são inerentes à forma fragmentada como funciona o nosso sistema de saúde, incluindo o seu financiamento. Se olharmos para os grandes utilizadores das urgências, encontramos doentes frágeis, idosos, com múltiplas co­morbilidades. Cerca de 70 por cento dos doen­tes deste grupo vão às urgências por descompensação de doenças crónicas, sendo trata­dos através das urgências, de forma episódica, reativa, quando de­veriam ser tratados de forma articulada e proativa, que garantisse continuidade de cuidados, centrada em equipas que integrem pro­fissionais dos hospitais e dos centros de saúde, que avaliem as ne­cessidades de cada doente e programem respostas adequadas. Es­te grupo de doentes, responsável pela maior parte das despesas em saúde, não tem sido prioridade e não tem tido respostas de um sis­tema que se tem centrado em programas verticais, dirigidos a do­enças, e não transversais, dirigidos aos doentes. Finalmente, há um lado de conveniência que motiva alguns doentes: as urgências es­tão abertas 24 horas por dia, não têm limite de admissão, às vezes estão mais perto, têm exames e especialistas na hora e isto é o que o que as pessoas cada vez mais privilegiam. Isto fornece uma pis­ta para uma solução que poderia ser encarada que é colocar nova­mente especialistas hospitalares a dar consultas nos centros de saú­de e aumentar o acesso a meios complementares de diagnóstico.
Este cenário de longas esperas nos serviços de urgência no inver­no é recorrente. O que se vive agora é diferente de anos anteriores?
_Em termos de afluência de doentes não me parece muito diferente. Já tivemos anos piores. O que me parece é existir uma maior atenção por parte dos media e uma menor capacidade de resposta por parte dos hospitais, por razões múltiplas: menor autonomia das institui­ções para encontrarem soluções locais, restrições à contratação de recursos humanos que afetaram sobretudo os hospitais mais bem geridos, redução do número de médicos experientes e diferenciados na linha da frente das urgências, que foram substituídos por médi­cos internos, em formação, médicos «indiferenciados» ou contrata­dos a empresas, que caem nas urgências «de paraquedas», com con­sequente diminuição da capacidade de decisão, o que atrasa todo o fluxo de doentes. A capacidade de resposta também está condicio­nada pela dificuldade no internamento: se uma equipa está prepara­da para observar um número determinado de doentes mas, a jusante, não há vagas nos ser­viços para internar, a equipa fica sobrecarre­gada, tendo de se repartir entre a área de ad­missão de novos doentes e as salas e corredo­res onde permanecem dezenas de outros a aguardar vagas nos serviços.
E porque é que existe essa dificuldade de internamento?
_Novamente as restrições à contratação, par­ticularmente de enfermeiros e assistentes operacionais, mas também o facto de muitos hospitais continuarem demasiado fragmen­tados em serviços e não em departamentos, sem uma gestão comum de camas, sem planeamento de altas e sem altas ao fim de semana. Por outro lado, temos doentes cada vez mais pesados, com muitos problemas sociais, para os quais temos cada vez menos respostas da Segurança Social ou da Misericórdia. Depois, particularmente na região de Lisboa, há muita falta de camas de cuidados continuados mas também em hospitais de agudos.
Nos últimos anos houve uma forte redução das horas extra nos hos­pitais e também uma diminuição do valor pago por hora. Isto fez que mais médicos, a partir dos 55 anos, deixassem de fazer urgência?
_ Sem dúvida que é uma das causas. Dantes os médicos mantinham–se a fazer urgência até mais tarde, hoje as pessoas chegam aos 50 anos e metem os papéis para deixar de fazer trabalho noturno. Co­mo, durante o dia, funcionam as equipas fixas, acabam por ser re­metidos para as urgências internas dos serviços. É um problema im­portante que afeta a capacidade de decisão e de resposta dos servi­ços de urgência.
Quando as equipas da urgência são constituídas, maioritariamente, por médicos internos, pode haver riscos acrescidos?
_ Os internos são médicos que estão em formação, o que significa que precisam de ser acompanhados por médicos especialistas. Ob­viamente que, se os médicos mais velhos, que tutelam e formam os internos, são insuficientes no serviço de urgência, há um aumen­to do risco e uma diminuição da qualidade da formação dos médi­cos internos.
Esta questão coloca-se a nível geral do país ou é diferente de hospital para hospital?
_Penso que é um problema generalizado mas existem diferenças lo­cais. A diminuição da remuneração das horas extra conduziu a uma me­nor motivação por parte dos médicos para a realização deste tipo de as­sistência tão exigente sob o ponto de vista físico e psíquico, mas, por ou­tro lado, tem de se atender ao nível de envelhecimento das equipas em cada hospital, e isto é variável de hospital para hospital.
Há anos que os vários governos tentam resolver este problema do recurso excessivo às urgências. Já foram nomeadas várias comissões de trabalho ¬ fez parte de uma delas ¬ mas o problema continua. Porquê?
_Porque o problema das urgências não é essencialmente o problema das urgências. Nas urgências desembocam todos os problemas médi­cos e sociais. São o último recurso das pessoas, estão sempre abertas e, apesar do tempo de espera, dão resposta. São também o reflexo de to­das as disfunções dos hospitais e do próprio sistema e, portanto, têm es­ta dupla vertente: são o espelho das disfunções do sistema e dos proble­mas das pessoas mas, ao mesmo tempo, funcionam como amortecedor porque é assim que o sistema dá resposta. É por isso que, por mais co­missões de urgências que sejam criadas o problema nunca vai ficar re­solvido com estas comissões, porque a resposta está em todo o sistema de saúde. O que a nossa comissão fez em 2008 foi definir uma estrutura, que aumentou a acessibilidade e a equidade no acesso, garantindo que cada serviço de urgência estava preparado para dar resposta adequada. A resposta para o atual problema tem que ver basicamente com flexibi­lidade de resposta.
No documento que elaborou faz uma série de recomendações para a re­organização das urgências, como a criação de um espaço próprio, com clínicos gerais, para os doentes de prioridades mais baixas. Funciona no seu hospital, São Francisco Xavier. Porque não noutros?
_Alguns hospitais já começaram a implementar este modelo. Nós fomos os primeiros a criar, em 1994, este tipo de centro de atendi­mento dos doentes agudos mas não urgentes, que funciona num es­paço adjacente à urgência. Esta solução é uma via rápida para aten­der os doentes de prioridades mais baixas e uma forma muito efi­caz de evitar tempos máximos de espera muito prolongados. Em São Francisco Xavier um tempo máximo de cinco horas já é muito preo­cupante. Tem a vantagem de segmentar o atendimento médico, co­locando médicos menos diferenciados a tratar este tipo de doentes e os mais diferenciados a tratar os que são realmente urgentes. Tam­bém evita a mistura de doentes graves e menos graves, no mesmo es­paço, o que aumenta o risco. É uma forma de organização lógica, que devia ser adotada (por mais hospitais) até porque está testada com sucesso e não conduziu a um aumento da procura. De resto, é uma das inovações da reforma de 2013 das urgências no Reino Unido.
Também considera necessário desenvolver estratégias como campanhas de educação dos cidadãos, promover a linha de saúde 24 e criar um sistema de comunicação online com informação sobre os tempos de espera nos diversos pontos de rede.
_Sem dúvida que deve haver mais investimento na educação das pessoas para uma melhor utilização dos serviços de saúde, por exemplo através de campanhas públicas. A literatura prova que são eficazes. É um problema que temos em Portugal, não só no excesso de recurso às urgências mas também no recurso direto às especialidades sem antes passar pelo médico assistente ou na pressão para a realização de exames complementares, cujo poder está interiorizado de forma exagerada na cabeça das pessoas. Devia ser uma aposta do sistema de saúde tentar introduzir mais racionalidade do lado dos utentes na procura dos serviços. A informação sobre tempos de espera seria eficaz se houvesse possibilidade de as pessoas escolherem entre hospitais ou se houvesse alternativas fora dos hospitais, mas não é isso que se passa.
Acha que seria possível acompanhar melhor, a nível da tutela, aquilo que se passa nas urgências?
_É um paradoxo o que se passa com os serviços de urgência em matéria de sistema de informação: por um lado as urgências são os serviços hospitalares com maior nível de informatização, e a maioria até tem o mesmo tipo de software, e no entanto existe uma grande dificuldade em ter uma monitorização de indicadores de atividade e qualidade do funcionamento das urgências. Isto acontece porque os sistemas não comunicam entre si, nem com uma base de dados central e, na grande maioria das vezes nem sequer com o restante hospital. Isto deveu-se a uma falta de regulamentação e exigência de regras de interoperabilidade, que agora se torna muito difícil resolver, mas que era importante reverter, porque é um enorme desperdício em termos de conhecimento e de apoio à gestão.
A especialidade de emergência poderia ser uma das soluções para o problema das urgências?
_Não. A urgência está dependente de muitas especialidades e já existe uma competência transversal na Ordem do Médicos que reconhece esta diferenciação. Criar a especialidade seria condenar estes médicos a ficarem até ao fim da vida profissional num ambiente de elevado burnout e acelerado desgaste físico e emocional, que não se aguenta muito tempo.