Nada justifica a morte de seres humanos

Setenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o horror do Holocausto é lembrado no livro Auschwitz, Um Dia de Cada Vez (ed. Esfera dos Livros). Para aprendermos de vez com o passado, num momento em que a história da Europa parece reescrever-se – com a religião novamente como ponto central.

No dia 27 passam 70 anos sobre a liberta­ção de Auschwitz pelas tropas soviéticas. O que é que aprendemos com este espaço de memória?
_Houve alguém que disse que a história en­sina, mas não tem alunos. E é verdade. Infe­lizmente, não se tiram as devidas lições dos acontecimentos, apesar de eu achar que há sempre algo que fica para as pessoas que refletem sobre isso. Há coisas que percebe­mos serem muito importantes, como o va­lor da vida humana – embora este, como vi­mos muito recentemente, continue a não ser respeitado por determinados movimentos. Os nazis tentaram quebrar uma coisa inque­brável, que é a unidade da espécie humana, e não conseguiram. Penso que grande par­te da derrota deles se deveu precisamente a esse fracasso. E hoje isso repete-se: o terro­rismo fundamentalista islâmico tenta fazer a mesma coisa, desta vez em nome de Deus.
O que explica atentados como os do Charlie Hebdo e o ataque ao supermercado kosher em Paris?
_O que é que explica pôr uma bomba numa criança de 10 anos e fazê-la explodir? Para os nossos princípios do valor da vida huma­na, da liberdade e do Estado de direito, é im­pensável. Não temos instrumentos para entender isso. Aquilo que se sabe é que o fun­damentalismo levado ao extremo é uma doença incurável, como dizia Voltaire no seu Dicionário Filosófico em finais do século xviii. As pessoas ficam com a razão desfigurada. E nós vemos que um dos grandes males da nossa época é a leitura literal, muitas ve­zes deturpada, dos textos sagrados. Vivemos numa sociedade em que uma série de refe­rências estão a desmoronar-se. Então, há uma aproximação à religião. Se moderada, é fator de coesão social; na sua versão funda­mentalista preconiza um voltar às origens que, por sua vez, também é uma interpreta­ção. E uma resposta que acaba por ser violenta, embora razão nenhuma justifique o assassínio de seres humanos. Julgo que hou­ve duas questões fulcrais para a transforma­ção do mundo muçulmano (e, na Idade Mé­dia, o islão deu muito ao mundo): por um la­do, a separação entre Estado e religião, que é condição absoluta de liberdade; por outro, o problema da mulher. Uma sociedade em que a mulher é completamente abafada, quando ela é que educa as crianças, reproduz uma si­tuação que não se altera nunca. E são os mu­çulmanos as principais vítimas do funda­mentalismo islâmico.
E o facto de o jornal judeu ultraortodoxo HaMvaser ter apagado as mulheres da fotografia dos líderes mundiais em Paris, na marcha contra o terro­rismo após o atentado?
_É um gesto tão absurdo e retrógrado que nem comentários tenho. Não estou dentro da cabeça dessas pessoas, felizmente. Re­presentam um punhado de gente que vê o mundo de uma forma que não coincide com a visão judaica em geral. É um fenómeno la­teral. Não tem nada que ver com o judaísmo, que valoriza o papel das mulheres judias e lhes dá exatamente as mesmas oportunida­des, as mesmas funções, os mesmos cargos de poder e de direção nas empresas.
A banalização da morte tornou-se central no terrorismo religioso internacional? Mais ago­ra do que antes ou é o mediatismo que a faz parecer maior?
_Sempre existiu. O que acontece hoje é que qualquer um tem acesso a meios de morte se desejar encontrá-los. A internet, por exem­plo, tem as vantagens que todos lhe reconhe­cemos, mas também é um veículo poderosíssimo para divulgar como se pode matar, fazer uma bomba, decapitar ao vivo. Nesse sentido banalizou-se, sim.
Fala-se em holocaustos pelo mundo fora, ge­nocídios e massacres que aconteceram e con­tinuam a acontecer. É legítimo falar no plural?
_Holocausto houve só um. Não por ser pior do que os genocídios a que assistimos – o arménio, o ruandês, o cambojano e ou­tros –, mas por ter características específicas e inéditas, como a instituição de cam­pos de concentração exclusivamente virados para o extermínio ou a utilização de gás Zyklon B. Todos os genocídios têm características próprias e é importante com­pará-los para percebermos aquilo que os dis­tingue e o que é comum, porque há sempre aspetos comuns, nomeadamente o despre­zo pela vida humana, o arrogar-se o direito de escolher quem deve viver e quem deve mor­rer. O Holocausto teve uma particularidade única, não pelo número de pessoas assassina­das mas pela intenção dos seus autores de exterminar todo um povo.
O que fez do complexo de Auschwitz o mais perfeito no seu horror [1,1 milhões de mortos]?
_Não foram os números que fizeram de Auschwitz-Birkenau o símbolo do Holocausto – morreram mais nas valas comuns da ex-União Soviética. Mas Auschwitz, um grande complexo, contém em si toda a polí­tica nazi: tem campos de concentração e de trabalho forçado para o esforço de guerra alemão; tem campos de mulheres; tem cam­pos das famílias ciganas e das famílias dos deportados de Theresienstadt, perto de Pra­ga; tem um campo de prisioneiros de guer­ra; tem Birkenau, que é essencialmente um campo de extermínio; aí se usou pela pri­meira vez o gás Zyklon B e estavam pessoas de toda a Europa. De modo que Auschwitz é o espelho mais fiel da política megalómana nazi. Enquanto Treblinka, Sobibor, Majda­nek e Belzec eram campos voltados exclusi­vamente para o extermínio, em Auschwitz havia uma envolvência que incluía fábricas imensas. A grande indústria alemã explo­rou lá o trabalho escravo dos prisioneiros, que morriam como moscas devido às con­dições. Além de se ter tornado também es­se símbolo máximo porque foi onde sobre­viveu mais gente para contar a história. Há memória do horror.
Como é que pessoas normais, de um mundo normal, puderam criar este universo diabó­lico? O que é que isso diz de nós enquanto seres humanos?
_Diz muito. E também diz muito do po­der das ideologias, que é algo menospre­zado com frequência. Quando alguém se convence de que aquele é o caminho, a úni­ca verdade, muitas vezes perde a lucidez e é capaz de tudo. Ouvi testemunhos de nazis que diziam: «Agora já percebi que isto é a salvação da Alemanha.» Essas pessoas não eram burocratas. Os mais importantes da hierarquia nazi estavam convencidíssi­mos de que aquilo era bom para a Alema­nha. Detesto a expressão “banalidade do mal”, porque o mal não é banal. Um homem banal a quem lavaram a cabeça pode efeti­vamente conter o mal. A guerra de 1914-18 teve grande influência nos que foram líde­res na Segunda Guerra Mundial. Enquan­to crianças, viveram o antissemitismo e o antibolchevismo desde sempre, e essas foram depois as bases da ideologia hitleriana.
Foi lição, esse sentido de resistência que per­mite a um ser humano aguentar o inferno pa­ra viver mais um dia?
_Foi, embora as razões que mantiveram as pessoas vivas sejam tão diversas que é impossível apontar apenas uma. Umas salvaram-se porque perceberam a «ética» dos campos e tentaram tirar o melhor pro­veito daquilo; outras porque tinham uma força interior imensa, em nome da sua pró­pria sobrevivência e da derrota do nazismo. Temos um instinto de sobrevivência fantástico e não sabemos. Só conhecemos os limites da nossa força ao sermos con­frontados com eles.
O mundo de hoje contém em si a possibilida­de de um novo Auschwitz?
_Digo no livro que Auschwitz é uma vir­tualidade da nossa civilização, o nazismo nunca teria acontecido se não houvesse os meios para tal. Quando pensamos nas ex­periências humanas realizadas por mé­dicos nos campos, tudo isso foi o produto de uma sociedade altamente desenvolvi­da, dos instrumentos tecnológicos e científicos aperfeiçoados que a modernidade nos deu. As coisas não se repetem da mesma maneira, mas acontecem de outra. Não aprendemos a lição. Vamos legislando pa­ra limitar o perigo, mas mesmo isso é muito difícil. Nós hoje estamos numa guerra, so­bretudo ideológica, daí ter sido fundamen­tal a marcha pela paz em Paris após os aten­tados. Temos de fazer a afirmação do ape­go aos valores basilares da nossa sociedade: a liberdade, o Estado de direito, a democra­cia. A Europa tem andado a dormir nos úl­timos anos.
Acordou agora?
_Não sei, mas sentiu um sobressalto. «Cui­dado, estão a tirar-nos o que nos é mais pre­cioso!» É verdade quando se diz haver is­lamofobia. No ataque de França, muitos demarcaram-se, e eu acho que essa demar­cação terá de ser feita constantemente, caso contrário correm o risco de pagar todos de igual forma. O Irão condenou os atentados, mas depois veio dizer que era contra a pu­blicação dos cartoons no Charlie Hebdo. Eu entendo que seja contra, mas quantas ca­ricaturas de rabinos, de papas, de Virgens Marias são publicadas? Podemos não gos­tar, mas eles têm direito a fazê-lo desde que não incitem à violência anti-islâmica, antissemita ou outra. Esse é o limite à liberdade de expressão. Temos de tirar ensinamentos do que se passa.

QUEM É ESTHER MUCZNIK?
Filha de pais polacos, viveu em Israel e na capital francesa, onde estudou Língua e Cultura Hebraicas e Sociologia na Universidade de Paris-Sorbonne. É vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) e presidente e fundadora da Memoshoá – Associação Memória e Ensino do Holocausto. Estudiosa das questões judaicas, defende a liberdade religiosa e o diálogo inter-religioso.