Letra aberta aos matadores das mulheres

Notícias Magazine

O amigo Rubem Braga não gostava que ele fosse letrista, coisa menor. Então, quando Vinicius de Moraes escreveu o poema sobre a garota de Ipanema – «Olha que coisa mais linda…» –, o Braga, cronista com ar zangado, atacou num poema: «Olha que coisa mais triste/ Coisa mais sem graça/ É esse velhote/ Que vem e que passa/ Num pesado balanço/ A caminho do bar…» Na verdade, Vinicius, em 1962, nem 50 anos tinha, mas muito uísque também mói. Aliás, ele e Tom Jobim estavam no bar quando a garota pas­sou. E o bar ainda se chamava Veloso (hoje, claro, é o Garota de Ipanema), na esquina da Rua Montenegro (hoje, claro, é a Vini­cius de Moraes) com a Rua Prudente de Moraes.

A caminho da praia, Heloísa passava, tinha 17 anos, ain­da era morena, e não loura e com os 70 que vai fazer dentro de me­ses. Agora, outro cronista, Luis Fernando Verissimo, inventou desfecho diferente para a letra famosa, caso a garota tivesse para­do quando sentiu o olhar fascinado do poeta. Mais tarde, quando os dois, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, andavam a passear pe­lo mundo a tirar partido do belo encontro, era o compositor que começava por trautear a descrição da moça: «cheia de graça», «do­ce balanço», «corpo dourado…» Entretanto, o poeta olhava para o uísque sobre o tampo do piano. Apresentação feita por Jobim, então, o desgraçado Vinicius agarrava no copo e cantava: «Ah, porque estou tão sozinho? Ah, porque tudo é tão triste?…»

E foi aí que a crónica de Verissimo resolveu inventar ou­tra história. A garota parava na esquina e metia-se com o poeta. Na altura do Bar Veloso ainda as cadeiras enchiam o passeio (hoje, o Bar Garota de Ipanema tem esplanada semifechada, de madeira e azulejos), e a abordagem até seria verosímil. «Tão so­zinho, porquê, poeta? Eu tou aqui!», diria a garota de coxas firmes, oferecida. Aí, Vinicius ficava nervoso, sentindo que lhe estavam a estragar o poema: «Vai embora, pô! Vai a caminho do mar, não pa­ra!» Mas Helô (aí ela já se tinha apresentado: «Heloísa Eneida Me­nezes. Mas me chama de Helô…») insistia: «Que é isso de “porque tudo é tão triste”?», brincava, com o dedinho compondo a alça do biquíni. Helô mantinha o sorriso malandro, baixava os olhos pa­ra a calçada e quando os levantava já Vinicius tinha fugido para o bar. De costas para a esquina provocadora. A garota encolhia os ombros, partia para a praia de Ipanema e, muito provavelmente, o mundo tinha perdido uma bela canção.

Conto isto para dizer que as boas letras das canções têm histórias que merecem ser estudadas como as pedras das velhas ci­vilizações. Há um fado que devia ser hoje escutado nos tribunais portugueses com a atenção que se presta às doutas alegações. Esses cobardes que matam as mulheres e se escudam na inevitabilidade de «nós os portugueses somos assim» deviam ser condenados a ou­vir o fado Não Venhas Tarde. Não os convoco, claro, para o prazer de belas palavras («alarde», «azedume»…), mas para ouvirem uma li­ção. Que não lhes é dada por um revolucionário dos costumes mas por Aníbal Nazaré (1909-1975), autor revisteiro, homem das déca­das de Salazar e crente no destino fatal. É dele «tudo isto existe/ tu­do isto isto é triste/ tudo isto é fado…», e entre esse tudo estão almas vencidas, noites perdidas, sombras bizarras, amor, ciúme, cinzas e lume, dor e pecado. Quer dizer, ele sabia que não é fácil, um homem e uma mulher. E, já agora, ele foi homem cuja mulher, a fadista Ma­ria Sidónio, partiu para outro homem, Tony de Matos.

Pois, esse Aníbal Nazaré escreveu Não Venhas Tarde. E, aí, ele conta que sabia que a mulher sabia que ele partia todos os dias para outra mulher. E que ela pedia: «Meu amor, não venhas tarde.» Ele confessa o seu medo de que, um dia, ela lhe diga: «Meu amor, não venhas cedo.» E medo ainda maior de que um dia ele chegue cedo «e seja tarde demais.» Repararam, cobardes? Já há 60 anos a história de um homem e de uma mulher podia ser dolo­rosa, mas era uma história entre iguais.

[Publicado originalmente na edição de 15 de março de 2015]