Kate Winslet

O grande público conheceu-a com a voluptuosa Rose em Titanic e esse foi o seu grande salto. Inglesa, cresceu em Berkshire, e aos 11 anos já fazia teatro na escola. Na BBC, estreou-se numa série infantil de ficção científica, Dark Season. Em exclusivo para Portugal, uma conversa com a atriz das curvas normais que, aos 40 anos, recusa Photoshop nas suas campanhas publicitárias. O regresso em Steve Jobs, num papelão que pode vir a dar-lhe mais um Óscar.

No Hotel Corintia, em Londres, coqueluche cinco estrelas da capital inglesa, sufoca‑se com tanto luxo. A salvação é trazida pelas palavras de Kate Winslet, que quebra o gelo garantindo que tem um dom: sabe sempre se já falou com este ou aquele jornalista. Decora as caras, defeito profissional, diz ela. Um defeito que joga a nosso favor. Lembra‑se da cara, mas não do nome. Não desarma, no entanto. «Mas é claro que sei sempre se já estive com este ou com aquele jornalista, duhh.» A indignação é programada. Está lindíssima, com umas calças pretas que lhe acentuam as formas normais, um rosto luminoso, sem retoques, aliás, com pouca maquilhagem. É por essas e por outras que, além de ser uma das melhores atrizes do mundo, Kate é também uma das mais queridas pelo público. São coisas diferentes: poderia ser bitchy e um talento do outro mundo. Mas não, é um talento do outro mundo e acessível. Daquelas que dizem tudo. Talvez por isso não passe de puro boato que se oiça no corredor que alguém da organização deu um puxão de orelhas a um jornalista que lhe perguntou como se sentia depois dos 40.

A razão desta ronda de entrevistas é um novo filme, preste a chegar às salas. Não tenhamos ilusões, Kate só nos recebe porque quer falar de Steve Jobs, o filme sobre o homem da Apple. Mas, no caso dela, falar de um trabalho é também falar de si e da sua arte enquanto atriz. Este filme é tudo menos o que Jobs, filme não autorizado pelos herdeiros, que se estreou em 2013, com Ashton Kutcher, quis ser. Este novo Steve Jobs, dirigido por Danny Boyle, o realizador de Trainspotting e Quem Quer ser Bilionário? e escrito por Aaron Sorkin (criador de séries como Newsroom e Os Homens do Presidente), não é uma biografia, mas sim uma espécie de teatro filmado sobre Jobs e os momentos que o definiram, as apresentações muito teatrais das suas criações, do Macintosh ao iMac.

Winslet é Joanna Hoffman, oficialmente a chefe de marketing da Apple, e a mulher que tomava conta dele e do que fazia – vemo‑la obrigá‑lo a admitir a paternidade da filha. O filme está dividido em atos, como no teatro. À provocação de que muitas outras atrizes quiseram este papel que cheira a Óscar, Kate responde com ar maroto: «Azar! Fiquei eu com o papel!» Um papel que lhe permitiu ficar com outra ideia de quem era Steve Jobs. «Através da Joanna Hoffman percebi que era alguém complicado, mas um homem com uma enorme habilidade para ser acolhedor. Percebi que poderia ser um bom amigo, alguém extremamente leal. Joanna adorava‑o. E mal viu o filme escreveu‑me a dizer o quanto tinha gostado. Pediu‑me também para transmitir à equipa que foi maravilhoso ver o Michael Fassbender a trazer calor humano à personagem que ela reconhecia. É a primeira vez que as pessoas vão ver o lado quente da alma de Steve Jobs. É interessante que o nosso filme nunca quis ser realista, nunca quis dizer isto foi o que se passou. O Aaron Sorkin já disse que isto não é uma fotografia do Steve Jobs, e mais uma pintura.»

A interpretação de Kate Winslet já está na lista das favoritas para o Óscar de melhor atriz secundária. É uma interpretação feita de carisma, força e garra. Um ano forte para Kate, que tem também pronto a sair A Modista (em dezembro), de Jocelyn Moorhouse, em que é uma costureira australiana com desejos de vingança. O filme está já garantido para Portugal. A dada altura na conversa, fala‑se da sua paixão em representar, tão presente neste Steve Jobs. «Alto lá!», diz ela, «o meu prazer em representar nunca mudou.» Ficamos em sentido.

O público conhece‑a desde o maravilhoso Amizade sem Limites, de Peter Jackson, de 1994. Ok, Kate Winslet é a atriz referência de uma geração, a que ficou marcada por Titanic, de 1997, que a transformou, com Leonardo DiCaprio, em ídolo imortal. O filme de James Cameron deu‑lhe a primeira nomeação para o Óscar e, depois disso, foi nomeada mais cinco vezes, venceu com O Leitor, de Stephen Daldry, filme que em 2008 lhe deu a estatueta de melhor atriz. Com Steve Jobs pode então chegar o segundo Óscar, desta feita como secundária. Ganhe ou não, é agora o tempo do regresso de Kate, acabadinha de fazer 40 anos, três vezes mãe de filhos de três pais diferentes: a Mia, de Jim Threapleton, o Joe, de Sam Mendes, e o Bear, de Ned Rocknroll.

Todo este alarido chega após uma série de papéis menos conseguidos, que levaram muitos a pensar que a atriz estivesse a passar por uma fase de aburguesamento ou coisa assim – as suas prestações em Comédia ExplícitaMovie 43 e na série de filmes The Divergent Series conseguiram que ninguém reparasse nela com olhos de cinema. Perto dos 40, parecia que de repente deixara de ter papéis à altura. Curiosamente ou não, voltou a falar‑se das suas curvas, como se Hollywood deplorasse que uma das suas maiores estrelas não fosse tão magra como ditam as regras. De alguma forma, Kate Winslet representou uma afirmação sexual e sensual das mulheres que não sofrem de magreza extrema. Desde a jovem gorducha de Titanic, emagreceu bastante, envelheceu outro tanto. Mas permaneceu uma diva sensual. E nesse sentido tornou‑se um símbolo.

A experiência também lhe trouxe outras vantagens. «O que é engraçado comigo e com esta personagem é que ambas dizemos o que nos vem à cabeça. A sério, se estou com um homem que está frustrado ou coisa assim, acabo sempre por perguntar se está com o período. Lá está, tem que ver com a minha confiança», diz. Tornou‑se perfecionista? «Nada. Sou é teimosa. E gosto de fazer o melhor possível aquilo a que me lanço… Não tem nada que ver com perfecionismo, nada mesmo. Tem tudo que ver com a experiência e com o tempo que levo nisto.»

E como é que os atores jogam com a sua autoconfiança? «Mas é claro que eu jogo com os meus problemas de vulnerabilidade. Por exemplo, aqui, no primeiro dia, quando todos os atores estavam numa mesa a fazer a leitura do argumento, eu estava em pânico. Estas situações são horrorosas, constrangedoras, todos a abrir cópias dos guiões e é a primeira vez que vamos ser julgados. Foi nesse momento a primeira vez que ouviram o meu sotaque da personagem. Pensei que iam odiar, que ia ser despedida. Acho que todos nos sentimos vulneráveis nestas alturas. E, sim, também fico nervosa. O que faço é tentar transformar isso numa experiência. Tento tudo e não faz mal se às vezes ficar uma merda. Um ator, nesses casos, tem de se atirar de cabeça, mesmo correndo o risco de soar estúpido. É importante às vezes parecermos estúpidos.»

E o medo de falhar também é rentabilizável para o talento? «Falhar ou não falhar não me incomoda. Confesso que nunca penso nisso. Acho que não tenho medo de falhar. O que quero é dar sempre o meu melhor. É diferente de não querer falhar. Julgo até que não tenho receios. Um ator não pode funcionar com medo. Nunca penso também em termos de ser a melhor. No outro dia a minha filha teve uma nota boa num trabalho de casa e estava chateada por não ter sido das melhores. Disse‑lhe que não podia ser. Ela teve uma excelente nota, mas queria ainda mais. Cheguei ao pé dela e disse‑lhe que esse tipo de competição não fazia sentido. O importante é tirar prazer daquilo que fazemos e ter a noção de que demos o nosso melhor. A sério, só nos podemos propor a dar o nosso melhor. Esse é um dos meus lemas de vida.»

Numa recente entrevista à revista Esquire, Kate Winslet espantou muita gente pela maneira como apareceu na produção fotográfica que foi matéria de capa – fotografias em roupa interior com uma sensualidade feroz, e um discurso que foi do elogio do próprio traseiro à demonstração do difícil desafio que constitui conciliar o trabalho com as demandas familiares. Eloquente foi a interrupção da entrevista para tratar do almoço do filho mais novo, Bear, do casamento com Ned Rocknroll, sobrinho do famoso empresário Richard Branson.

O que atriz estava a tentar dizer à opinião pública é que quer ser o exemplo de que as mães de família podem, afinal, ter tudo: carreira, filhos e explorar a sensualidade sem preconceitos. Para Winslet, a nudez e as cenas de sexo nunca foram tabu. Fumo Sagrado (1999), de Jane Campion, é talvez uma das mais libertadoras experiências eróticas com pendor feminista que Hollywood alguma vez viu. Também em Jude (1996), de Michael Winterbottom, chocou os públicos mais conservadores. No fundo, a atriz é alguém que não tem medo de confrontos. No cinema, nas entrevistas ou na vida.

A sua interpretação de Joanna Hoffman, no filme que aí vem, vai ficar marcada pelo sotaque. A personagem, de origem polaca e arménia, tinha um sotaque estrangeiro mais denso, a decisão de o suavizar foi da atriz. Fê-lo a pensar no público. É interessante que Kate, inglesa, tenha acabado por fazer papéis de mulheres estrangeiras. A seguir, em A Costureira, é uma australiana de gema. «Gema» quer dizer da província e inclui sotaque cerrado. Acabou também de filmar Triple 9, de John Hillcoat, em que será uma fora‑da‑lei de origem israelita e russa. E isso lembra que é tão boa a fazer de inglesa (Sensibilidade e Bom Senso, por exemplo) como de alemã (O Leitor, o filme que lhe deu o Óscar).

O que a espera, agora? Uma caminhada gloriosa pela temporada de prémios? Para já está orgulhosa. A própria ex‑diretora de marketing da Macintosh deu‑lhe os parabéns. «Mal aceitei este projeto, percebi que iria entrar no filme que todas pessoas que conheço vão querer ver. Porque é sobre uma figura tão forte e tão cheia de histórias. Alguém tão conhecido mas que provoca tanta curiosidade e intriga… Depois há também aquela legião dos taradinhos de tecnologia que o tomam como um ídolo. Para eles, Jobs era como que um deus do rock. Por isso é que o Danny Boyle filma aqueles lançamentos de produto como concertos de rock. Ainda agora assistimos ao lançamento do novo iPhone… as pessoas comportam‑se como se estivessem num concerto…»

O filme, no entanto, já enfrentou resistências, de Tim Cook, o atual CEO da Apple, e da própria viúva de Jobs, Laurene. «É verdade que eles não estão muito entusiasmados com o filme. Confirmo que chegaram a querer Leonardo DiCaprio no papel principal em vez do nosso Michael Fassbender. O que sei é que a Laurene já tinha problemas com a biografia de Walter Isaacson quando esta foi lançada, o que não me espanta. Vamos lá, é natural… Deve ser muito difícil para ela, o Steve não morreu assim há tanto tempo… Não posso defendê‑la ou dizer‑lhe o que ela deveria pensar sobre o filme, quanto mais não seja porque faço parte dele. Mas, na verdade, este não é “mais um” filme sobre a vida dele. Estou mesmo convencida de que esta é uma visão excecional sobre a sua vida e na qual ganhamos acesso ao Steve pai e ao Steve homem. Além do mais, está retratado o verdadeiro génio que era. O filme é a celebração disso tudo, uma história que o puxa para cima. Alguém como ele, que tentou mudar o mundo, merece um bom filme.»

Merece. Aliás, vários. Recordemos que há três anos tivemos Jobs, de Joshua Michael Stern, o biopic com Ashton Kutcher a fazer de Steve Jobs. E, já neste ano, nos EUA, foi lançado o documentário Steve Jobs – The Man in The Machine, de Alex Gibney, o sempre polémico documentarista – que já tinha assinado filmes com tema «quente», como Going Clear: Scientology and The Prison of Belief, olhar investigador sobre a cientologia, e A Mentira de Armstrong, sobre o ciclista Lance Armstrong. Acresce a isso a «novela» com este argumento, inicialmente pensado para o realizador David Fincher e com Christian Bale como protagonista. O ator que já foi Batman desistiu por não acreditar ser capaz de dar conta do recado. Noutra encarnação desta produção, chegou ainda a considerar‑se Tom Cruise.

Para Kate Winslet, que lutou muito para ficar com o papel, a decisão de se juntar a esta obra não foi de instinto: «Quis entrar neste filme porque qualquer pessoa no mundo quer estar numa sala com Michael Fassbender, Danny Boyle e o argumentista Aaron Sorkin. Meu Deus! Estes três homens são incríveis.» Pureza desconcertante da atriz que não tem nem nunca teve um computador portátil. «Não preciso, nem envio e-mails», diz a rir. «Bom, sei enviar fotografias do meu iPhone», concede. «Antes estava muito feliz com o Blackberry, mas depois o meu marido disse‑me que teria de mudar para o iPhone porque só este seria compatível com o iPad.» Atrás dela, sentada no chão, está a sua publicista que não para de rir. Os efeitos da tecnologia, esses até uma estrela os sente, e Kate lembra como há pouco, no corredor do hotel, ninguém olhava para ela porque estavam todos de roda do telemóvel. «O que o Steve Jobs conseguiu é notável, mudou a forma de comunicarmos, mas também há um lado negativo disto. Estamos todos viciados, temos de começar a ter regras pessoais de utilização do iPhone. Há pessoas que só falta darem um beijo de boa noite nestes aparelhos antes de pregarem olho…. Por favor. O meu filho de 11 anos não usa nada disto. Temo a geração de crianças que cresce a olhar para os adultos que estão sempre a olhar para o telefone. Sim, a minha filha de 15 anos já tem telemóvel, mas nós, os pais, temos de lhes explicar os prós e os contras destas coisas e não lhes darmos acesso às redes sociais nem ao Safari. Temos de lhes dizer a verdade.»

E Kate ali está, a falar com segurança e garra e sem baias, e percebe‑se bem que cada vez mais está confortável na sua pele. É verdade que tem apenas 40 anos. Mas isso, em Hollywood, pode ser muito, como rezam as últimas polémicas mediáticas sobre o assunto. E ela, que acabou de assinar um contrato com a Estée Lauder que proíbe a marca de fazer Photoshop para modificar as suas imagens ou atenuar as suas rugas, fala sem problemas da passagem do tempo: «É ótimo estar a envelhecer. Já podemos marimbar-nos para certas coisas. Sou como sou porque tive uma sólida educação familiar. Ensinaram‑me sempre a ter os pés no chão. Claro que tive algum sucesso na carreira e isso permitiu‑me ganhar mais confiança. Quem já pisou tantas e tantas passadeiras vermelhas como eu e não se sente bem consigo próprio mais vale desistir! Estar numa passadeira vermelha pode ser uma experiência aterradora!»

Palavras de quem já tem 23 anos de carreira, que começou aos 17 e nunca esteve na verdadeira mó de baixo (os filmes anteriores não eram lastimáveis, apenas desprovidos da grandeza habitual das suas escolhas), apesar de papéis em filmes que passaram ao lado. Tão ao lado que não mancharam a sua imagem de atriz perfeita. Quem a apanhou em Romance e Cigarros [2005], de John Turturro e O Caminho do Poder [2006], de Steve Zaillian, percebe que ela talvez seja a menos culpada desses flops. É a vantagem de aparecer em filmes que ninguém vê – fica‑se menos exposta.

Kate é, no fundo, uma showoman. Passa de uma conversa normal para se transfigurar em Joanna Hoffman, mas com o sotaque real e forte da polaca. Isto numa entrevista banal, num hotel anódino. Assim do nada, a um palmo de distância, uma amostra de representação em exclusivo de uma das maiores atrizes do mundo. Ela a mostrar ao vivo o que não quis fazer no grande ecrã. E tem imensa piada. A campeã das atrizes da sua geração. «O truque é convencer todos os outros de que somos diferentes. É como se fosse um jogo. Representar é o truque mais antigo. Quando convencemos uma plateia que aquilo ali não somos nós… acontece magia. Em Steve Jobs não queria ficar muito diferente de mim própria, apenas queria ser Joanna Hoffman.» Kate nunca esteve mais feliz. O regresso a casa há uns anos, depois do divórcio com o realizador Sam Mendes, contribuiu para isso. E uma mulher feliz é melhor atriz.