Criar sempre foi, para mim, a forma de escapar de um dia-a-dia que por vezes não era bonito ou agradável. Não me perguntem se o ímpeto criativo já nasce com alguém e se desenvolve por determinadas causas ou factores que essa pessoa encontra na vida. Haverá decerto quem melhor o possa explicar, fundamentando o seu discurso em conhecimentos científicos.
Por aqui, apenas a observação empírica se manifesta e essa observação levou-me a notar que todas as crianças parecem ter uma capacidade criativa inata, o que me deixa a pensar que esse ímpeto criativo nasce com cada um de nós. Depois, à medida que a vida se vai desenrolando, muitos são obrigados a calar essa voz, associada a infantilidade e imaturidade, para perseguir intentos considerados mais sérios.
Na verdade, não sei o que poderá ser mais sério do que cumprir um desígnio primordial. Se nascemos com essa capacidade, após anos de depuramento biológico que apenas mantém as características e capacidades importantes para cada espécie, será porque ela é uma mais-valia para a nossa vida e para o nosso desenvolvimento. Mas, por alguma razão que não entendo, o ser humano considerou que a criação é algo apenas reservado a alguns, poucos, excêntricos, desalinhados, bafejados.
É certo que a criação é sempre subversiva, porque questiona a realidade, dizendo-lhe que não é suficiente e que é incompleta. Eu entendo que se possa não querer ir por aí. Chega a ser doloroso criar algo. Primeiro, a excitação que se sente quando a ideia nos ocorre. Depois, a angústia de ter de desenvolver algo que não traz manual de instruções, sem que saibamos como e se vamos ser bem-sucedidos. Essa angústia transforma-se em obsessão. Adormece-se com a obra, sonha-se com a obra, acorda-se com a obra e tudo o resto fica em suspenso à espera que a obra se revele inteira, finalmente. É preciso disponibilidade mental e emocional para criar.
Eu disse que entendo e entendo, de facto. Em criança, criava mundos diferentes, por não gostar muito do mundo em que vivia. Escrevia, contava histórias na minha cabeça, a brincar com as bonecas. Assim fui andando e cuidando dessa força criativa que me movia com muito cuidado e afinco.
Era, ao mesmo tempo, fonte de angústia e a resolução das angústias que sentia. Porquê? Porque, ajudando a resolver muitos dos meus problemas, obrigava a confrontar-me regularmente com eles. Mas a sublimação que sentia sempre que acabava um texto, uma canção, um concerto fazia que sentisse que estava a fazer algo bom para mim. Bom, não. Vital.
Quando entrei no mundo do trabalho e apesar de continuar a cantar, deixei de criar. Não escrevia nem canções nem textos. Na altura, não pensei muito no assunto. Achei que se tinha esgotado em mim essa força criativa e que as minhas ideias tinham chegado ao fim. Concentrei-me em interpretar, que é uma forma de criar ou, se preferirem, de recriar. E a minha imaginação lá foi ficando adormecida, esquecida, ignorada.
Só que estas coisas das forças motrizes não funcionam como nós queremos e sim como tem de ser. Quando há algo dentro de nós que tanto nos define, mais tarde ou mais cedo, volta a fazer-nos cócegas, primeiro, depois, um leve formigueiro e, finalmente, sentimos aquela doce angústia que os anglo-saxónicos definem como longing e que poderia traduzir como a necessidade ou o desejo de cumprir algo.
Criar não é excentricidade, é uma universalidade. E uma necessidade. De quê, não se sabe e até onde nos pode levar também não. Criar alguma coisa pode não nos fazer sentir felizes, mas faz-nos sentir vivos. Daí a sua importância. Pior do que morrer é andar pela vida morto.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
1-11-2015