Há sempre um Peanuts para cada um de nós

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Como um grupo de miúdos desenhados por um génio da BD moldou a nossa infância e a adolescência

Qual pode ser o resultado de crescer com os Peanuts do americano Charles M. Schulz? Pode ser perigoso. Ou maravilhoso. Ou esquizofrénico. Uma pessoa pode ficar cética ou ingénua ou romântica ou pessimista. Ou tudo ao mesmo tempo. Numa ansiedade tão charliebrowniana.

Conheci o Charlie Brown através do Snoopy, como muitos. Esse cão fofinho, transformado em peluches e outros objetos de merchandising. Uma manobra de marketing. Esta, teve bons efeitos. Conquistado o coração, a razão foi a seguir. E foi… tão bom.

As tiras de Charlie Brown e o seu bando de amigos eram como um mundo inteiro – o nosso mundo. O humor cínico. As fraquezas que são forças. E a ansiedade. Sim, a ansiedade, medo, preocupação. Sentimento tão presente quanto esquecido das nossas infâncias. Nunca mais temos medo como na infância, alguém se lembra disso? Nesta semana, no jornal inglês The Guardian, Stuart Jeffries explica que o que o atrai nesta BD é que Schulz, «como um adulto, nunca tentou sistematicamente embelezar o que a infância é, de facto».

É isso mesmo. Num olhar rejeitado, um jogo perdido, um desejo não preenchido ou mesmo um não que se ouve constantemente. Às tantas, Charlie Brown diz: «Tenho receio de não ter mais nada com que me preocupar.» É isso. E as formas de lidar com isso.

Havia a maldisposta Lucy e o encardido Pig Pen. A despachada maria-rapaz Patty. Linus van Pelt e o seu cobertor protetor. E o Schroeder e o seu piano. Aqueles miúdos éramos nós. E desafio quem venha dizer que não tem a sua personagem (ideia agarrada pela produção do filme que aí vem e nos colocou a todos transformados em personagens com uma aplicação no Facebook).

Como nos identificámos com os amores e desamores de um grupo de amigos que cresciam juntos nos subúrbios americanos, seguros o suficiente para que fossem sozinhos apanhar a camioneta para a escola. Schulz não os colocou a viver na ensolarada Califórnia, onde os desenhava, no conforto da avença de uma Sindication. Estes subúrbios são no frio, pacóvio e triste estado do Minnesota, onde ele próprio viveu a sua infância. De casas de um andar e com relva e vendas de limonada à porta. Das garagens e dos bonecos de neve.

Miúdos que se apaixonavam e se zangavam juntos. Que analisavam a vida, que lhes chegava nova todos os dias. E juntos combinavam, com a destreza de um mestre, a vida real e a fantasia. Ou, como diz João Paulo Cotrim, no artigo que publicamos: «Schulz dizia que crianças não conversam, falam, até perguntam, mas que só o amadurecimento da adolescência lhes permite partilhar com outros a descoberta da conversa. Não sei, mas os putos de Schulz continuam a conversar muito…»

É ainda mais esquizofrénico ter crescido com os Peanuts quando a seguir vieram os anos 1980. O mundo mostrava a cada novo dia que nem tudo ia ser como estava planeado. E Charlie Brown ficaria mesmo para trás, nesses «roaring 80’s» de dinheiro a rodos e futuro aberto. O que aí vinha, com o fim da história a anunciar a prosperidade? Entre uma coisa e outra aconteceu o óbvio: ficámos todos perdidos.

[Publicado originalmente na edição de 13 de dezembro de 2015]