Ainda hoje ele diz que a culpa foi do George Michael. «E do outro também», acrescenta a mulher. «Andrew qualquer coisa. Eles eram dois.» À sexta vez que ouviu os Wham! a cantar Last Christmas no mesmo dia (ele garante que as contou), o João soltou dois palavrões, pegou na filha ao colo e saiu disparado da loja que tinha a música alta, a temperatura elevada e muito pouco espaço para se mexerem. Estávamos a 21 de dezembro de 2012, passam amanhã três anos, ele lembra-se bem da data, e aquela foi a derradeira gota de água para um fulano que até gostava do Natal, mas que nos últimos tempos tolerava cada vez menos a época.
O João nem era um tipo de discurso extremado. Não maldizia o consumismo, não criticava quem gastava este mundo e o outro em presentes, não se aborrecia com as longas listas de prendas que a mulher fazia questão de dar. Para a família mais próxima, gastava um pouco mais. Os restantes eram corridos a lembranças baratas. Brincos, marcadores de livros, ímanes de frigorífico, porta-chaves, bombons ou canetas, a Sandra gostava mesmo era de regalar toda a gente. Da vizinha do primeiro andar ao rececionista da empresa, todos tinham direito a um miminho. E ele tinha uma paciência de santo para a ajudar a fazer a lista e tratar, ele próprio, de algumas compras. Ora, foi precisamente num desses momentos – «estava há vinte minutos na fila para pagar umas luvas de quatro euros para a neta da chefe dela» – que saltou a tampa ao João.
Já tinha corrido umas dez lojas do centro comercial. Tinham chegado cedinho para estar fora dali antes do almoço, mas algures neste plano perfeito atrasaram-se um pouco. Até já se tinham separado para se despachar mais depressa, ele com a filha mais nova, a Sandra com o mais velho. Mesmo assim já levavam quase cinco horas de shopping. Durante as quais ele garante que ouviu várias vezes o All I Want for Christmas Is You, o Jingle Bells, o A Todos Um Bom Natal, outra coisa qualquer do coro de Santo Amaro de Oeiras e, claro, os Wham!. Por isso, assim que começou a ouvir novamente os acordes do hino natalício da banda britânica, passou-se. Estava a desapertar o casaco da miúda, que já escorria suor pela cara, com tanta gente em cima deles, tantas mãos a esticarem-se para os presentes de dois euros que não servem para nada, tantos empregados com barretes de pai natal enfiados na cabeça a gritar «cliente seguinte» e a lembrar que não faziam embrulhos, tantos encontrões de pessoas molengas carregadas de sacos. «Chega!», disparou em voz alta. Seguido de duas asneiras entredentes. E saiu.
Faltam quatro dias para a consoada e o João e a Sandra estão novamente a preparar-se para quase mandar o Natal à fava. Tal como aconteceu no ano passado e há dois anos, depois do almoço do dia 25 vão meter-se no carro com os filhos para passar uns dias longe da confusão, dos brinquedos novos, do bacanal de comida e do principal ritual pós-Natal: a troca de roupa que não serve ou de que não se gosta graças aos talões sem preço. Só não boicotam tudo porque os miúdos gostam deste período e porque os avós não iam perceber isso de estarem longe da família nesta altura.
Ambos fizeram cedências. A Sandra já não compra recordações para todas as pessoas com quem se cruza e o João já consegue ouvir novamente o George Michael e o Andrew Ridgeley (é assim que se chama o outro) sem se enervar. Continuam a fazer a árvore de Natal, mas neste ano até pouparam nas bolas novas. Pouco a pouco estão novamente a tornar-se pessoas funcionais e razoáveis nesta época. Ao contrário da maior parte de nós.
[Publicado originalmente na edição de 20 de dezembro de 2015]