Às vezes, a vida de um trabalhador independente parece saída de um remake do filme O Feitiço do Tempo. E se, ao cair das 12 badaladas do dia 31 de Dezembro de 2014, 2015 não viesse e, ao invés, o calendário voltasse dois anos para trás, para o dia 1 de Janeiro de 2013?
Este é o guião que seguem todos os que trabalham a recibos verdes, como trabalhadores independentes, em Portugal. Passo a explicar: as contribuições que estes trabalhadores pagam à Segurança Social não são relativas àquilo que ganham no presente, mas àquilo que ganharam há dois anos atrás.
Sabendo que a independência não vem sem uma boa dose de insegurança, será fácil perceber que nem todos os anos são iguais para quem tem uma actividade intermitente. Por isso, a discrepância entre o presente e o passado apresenta-se como especialmente gravosa para quem tem de gerir não só um rendimento variável como as contribuições futuras sobre esse rendimento.
Na teoria, poder-se-ia argumentar que com uma gestão organizada das contas se poderia poupar o que se iria ter de pagar dois anos à frente. Na prática, todos poderão perceber que, mercê da própria natureza da vida de quem tem uma actividade não regular, poupar dinheiro não é, muitas vezes, uma opção viável.
Acresce a isto o facto de o próprio conceito de «recibo verde», que parecia caber apenas às profissões independentes e liberais, ter sido «sequestrado» pelas entidades patronais públicas e privadas, nele cabendo agora todas as actividades profissionais de que nos possamos lembrar. Os abusos cometidos pelas entidades patronais que criaram o que se chama «falso recibo verde» procuraram ser expiados numa legislação que pretendia dar uma maior protecção a quem passava recibos verdes. No entanto, falta há muito uma abordagem séria aos problemas sentidos pelos trabalhadores que recorrem aos ditos recibos.
Algumas destas medidas tentaram concretizar o que há muito se pedia, ou seja, tornar o regime de trabalho dos trabalhadores por conta própria mais justo em relação ao regime de trabalho dos trabalhadores por conta de outrem em matéria de direitos. Contudo, como sempre se evitou analisar os aspectos mais importantes e profundos que mais fortemente afectam esses trabalhadores e a diversidade de situações que abarca esta realidade, aquilo que foi legislado até agora não conseguiu resolver os seus maiores problemas. E o que seria mais premente analisar e legislar, permanece inalterado. Principalmente, no que toca às actividades que, pela sua natureza, não se enquadram num regime geral.
Se um recibo verde existe para suprir uma necessidade temporária e deverá durar a prestação de serviços apenas o tempo necessário até ao preenchimento dessa necessidade, o seu regime de prestações sociais deveria estar adaptado a essa realidade e acompanhá-la.
Se, numa realidade que está sempre em mutação, tanto em frequência como em rendimento, as obrigações decorrentes dessa realidade são rígidas, inflexíveis e estáticas, então são essas obrigações que estão desadequadas e deveriam ser repensadas.
Seria talvez mais justo que a prestação a pagar estivesse indexada ao valor do recibo que se passa, caso a caso, recibo a recibo. Consoante o montante, assim o desconto.
O ideal seria que se pudessem ouvir as várias realidades que habitam dentro do vasto mundo dos trabalhadores por conta própria. Que houvesse vontade política para o fazer e para mudar o que efectivamente tem de ser mudado para que tudo seja mais justo. Para que nos pudessem tirar deste filme onde o tempo nos puxa constantemente para trás, quando queremos é seguir em frente com a vida.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 25 de janeiro de 2014]