Estas ilhas que eu amo

Chegou esta semana às livrarias o novo romance de Joel Neto. Depois de vinte anos a viver em Lisboa, o autor açoriano escreve, em exclusivo para a Notícias Magazine, sobre esse regresso à Terceira, em busca de uma vida mais barata, mais serena e mais livre. Arquipélago é uma declaração de amor à ilha que nunca o abandonou, à mãe que o ensinou a amá-la e à mulher que voltou com ele.

Pensando bem, sempre quis escrever uma história de amor. Mas as grandes histórias de amor não se escrevem: vão-se escrevendo. Acompanham-nos pela vida, às vezes até sem nos darmos conta disso, e revelam-se apenas quando bem entendem.

É aí que nos cabe passá-las para o papel. Ou então não foi nada disso: foi apenas ter chegado aos 40. O número, aqui, tem importância. É metade da vida, parece dizer-nos o ritmo biológico. Também isso este texto tentará demonstrar, a dado passo: que nem todo o determinismo é tonto, embora tanto dele o seja.

Dessa descoberta nasce, em boa parte, a minha história de amor. A perceção dela. Mas o melhor é começar pelo princípio.

Ao fim de vinte anos em Lisboa, decidi cumprir uma ideia antiga. Decidimos, na verdade. Nascido e criado nos Açores, eu passara a totalidade dessas duas décadas a sonhar com o regresso à terra. Fora estudante universitário, fora jornalista, fora um homem na cidade. Mas nunca deixara de suspirar pela ilha. Escrevia sobre ela. Falava sobre ela. Era «o açoriano» em todo o lado por onde passava. E, ao mesmo tempo, tinha cada vez menos a certeza sobre o que é que nos meus Açores existia de facto e o que é que era efabulação minha.

Para mais, havia a identidade. Do que éramos nós feitos, exatamente? Do que era eu próprio feito – o que é que em mim era açoriano, o que era português e o que era do mundo?

Foi a Catarina, lisboeta do Castelo, que teve a ideia: e se fôssemos lá viver por uns tempos? Pelo menos, gosto de recordá-lo assim. Talvez eu tenha plantado nela alguma semente, mesmo sem o saber. O que não significa que o seu gesto não tenha sido pleno de generosidade.

Mudámo-nos há três anos. Já então eu adquirira a velha casa dos meus avós: a casa onde a família se reunia, durante a minha infância. Visitámo-la com regularidade. Mas, no verão de 2012, não foi como das outras vezes. Viemos de férias e, quando as férias acabaram, demos um salto a Lisboa, enfiámos a totalidade dos nossos pertences num contentor e comprámos um bilhete só de ida. Ou de vinda.

Lisboa estava bastante tensa, com a crise económica e tudo. E, além disso, ambos sobrevivíamos de indústrias em dificuldades: os livros e os jornais. Havia toda a conveniência em encontrar um modo de vida mais barato, mais sereno e mais livre.

No dia em que abrimos o contentor, várias semanas depois, os ficus continuavam vivos, o que nos pareceu bom auspício.

O primeiro ano foi uma espécie de lua-de-mel, com tudo o que as luas-de-mel têm de encantador e também de irreal. Fazíamos caminhadas matinais, gozávamos a paisagem num deleite pasmado e colecionávamos descobertas sobre um modo de vida que a mim próprio me surpreendia – pela partilha, pela autenticidade, pela relação com a natureza.

O jardim ia crescendo. Tínhamos uma horta e, ao fim de algum tempo, um cão a que demos nome de escritor. Fazíamos cada vez mais amigos, amávamo-nos como no primeiro dia – não: amávamo-nos mais – e tínhamos ainda metade da vida à nossa frente.

O segundo ano teve altos e baixos. A Terceira não é uma ilha como as outras: é mais republicana, de um igualitarismo empedernido. Misturada com a subversão do Espírito Santo, o culto mais democrático do cristianismo (creio que não arrisco muito ao dizê- lo), essa condição cria um código que nem sempre fomos capazes de decifrar.

Houve momentos em que nos apeteceu fazer uma pausa da vida em sociedade e andar simplesmente pelos montes, nós e o nosso Melville – passeando por entre as criptomérias, detendo-nos para um piquenique sobre o mar, aspirando o cheiro maravilhoso das ilhas, aquele misto de erva húmida, leite morno e bosta de vaca.

E, de repente, estava ali a minha história: naquela paisagem, na sua beleza mutante, no modo como continuava a renovar-se de estação para estação, de semana para semana. Na maneira como se reinventava a cada instante e, com isso, ia resistindo aos terramotos, aos vulcões e às tempestades.

Na sua capacidade de redenção.

Talvez ma tenha mostrado o Melville. O efeito que a descoberta deste cão teve em mim é, por si só, um romance. Mas, em todo o caso, é de uma epifania que falamos. Num ápice, as peças do puzzle pareceram reordenar-se. Os milhares de textos, notas e perplexidades que se iam reunindo em documentos Word e cadernos de apontamentos como que ganharam uma forma, uma unidade. E, para minha grande surpresa, o olhar era otimista.

Digo grande porque ando a tentar domar os adjetivos. Podia dizer enorme, colossal, magnífica surpresa. Os anos tinham-me ensinado que, para se ser um homem urbano, racional e inteligente, havia que abraçar o ceticismo como filosofia.

Aparentemente, era preciso amar a ideia de que a vida é absurda e torcer o nariz à mais pequena possibilidade de harmonia. E, agora, eu dava por mim a ter esperança. Ou talvez, mais uma vez, tivesse que ver com o facto de haver chegado aos 40 e, como Robert Redford em Havana, percebido que já não ia morrer novo.

O facto é que eu queria viver em pleno. Estava, enfim, livre do meu carcereiro.

Bem vistas as coisas, o ceticismo é igual a qualquer outro carcereiro: corremos o risco de nos apaixonarmos por ele. Mas eu ainda ia a tempo. Depois de tantos anos a excluir hipóteses, via-me a somá-las. O que teria o seu mistério, se não se desse o caso de ser essa a grande diferença entre o cientista e o escritor.

O resultado é este Arquipélago. Creio que, num texto de contracapa, se poderia dizer que tem personagens pitorescas, cenários exóticos e tradições ancestrais; que tem sotaques divertidos, seitas ocultas e receitas gastronómicas; que tem movimentos políticos, descobertas arqueológicas e uma suspeita razoável de que, afinal, podem ter vivido nos Açores outros povos antes da chegada dos portugueses, no exíguo mundo de Quatrocentos.

Mas eu gosto de acreditar que é mais do que isso. É a melhor coisa que alguma vez fiz, o que não deixa de ter significado. É uma homenagem às três mulheres da minha vida: a minha ilha, que afinal nunca me abandonou; a minha mãe, que me ensinou a amá-la; e a Catarina, que voltou comigo. E é também uma declaração de esperança.

Habituámo-nos a deplorar o século xxi como o tempo em que nunca se chega a crescer. Pais de família vivem agarrados a videojogos, homens de barba feita saem de casa dos progenitores aos 35 e aos 40 anos, mulheres de todas as idades tamborilam à espera de alguma responsabilidade e de algum romantismo.

Arquipélago também vem dizer-lhes, a elas como a eles, que provavelmente não é tarde de mais. Que as segundas oportunidades existem e, às vezes, até são as melhores.

Desse ponto de vista, tratar-se-á de um romance de formação. Um romance de formação tardia, talvez. Um romance sobre crescer mais tarde, se não se cresceu antes – um romance sobre aquilo que o milénio, apesar de todos os seus defeitos, tem de redentor.

Mas é sobretudo um romance sobre aquilo que me comove. Sobre quase tudo aquilo que alguma vez me comoveu. E, quando nós escrevemos sobre aquilo que verdadeiramente nos comove, poucas coisas poderão intrometer-se entre isso que escrevemos e o coração do leitor.

Não será o último livro desta fase. Interessa-me continuar a explorar a possibilidade do Bem, mesmo permanecendo tão perplexo perante o Mal como qualquer outro escritor. Estou naquela idade.

NM1199_CapaJoelNeto

Ed. Marcador/Os Livros RTP
460 páginas, 18,98 euros