«Escreve»

Notícias Magazine

Para fazer o que faço hoje, ninguém me disse «escreve». A apetência pela escrita é inata, poderia pensar ao ler o livro de bebé onde a minha mãe explica que eu gostava muito de livros, mesmo antes de saber ler e escrever. Ou ao lembrar-me das histórias que inventava quando era miúda e que batia alegremente à máquina, horas a fio. Mas será que isso se fica a dever apenas a uma predefinição de nascença?

Lembro-me depois da minha professora da segunda classe, que sempre nos mandou exercícios de ditados e cópias para trabalho de casa. E do ano em que passei uma parte das férias de Verão a copiar textos de livros e a escrever o que me ditava a minha mãe.

Creio agora que tenha sido esse o «segredo» para o facto de dominar o português com o mínimo à-vontade. Não digo com isto que sou apologista de um grande volume de trabalhos de casa que retire à criança o precioso tempo que deve ter para brincar depois das aulas. Mas estou certa de que algumas tarefas são basilares na nossa relação com a língua e para que as competências se desenvolvam é necessária uma insistência em exercícios repetitivos e exaustivos.

Não duvidemos: o domínio da língua materna irá influenciar a forma como nos relacionamos com o mundo. Para os mais materialistas importará saber que por mais afastada que pareça estar a profissão que se escolhe da necessidade de domínio da língua materna, quem de facto não adquira competências básicas nunca conseguirá passar de um certo nível na sua carreira. Afinal de contas, os números têm de ser explicados, por escrito ou oralmente. As ideias, defendidas. As opiniões, debatidas. Mas para lá das profissões e sucessos materiais está o sucesso da nossa vida enquanto seres sociais.

Somos um animal comunitário, precisamos de viver com outros e precisamos de que eles nos aceitem para nos sentirmos felizes. Para que se estabeleça uma relação de confiança e partilha é necessário dialogar. A expressão do que se sente e do que se pensa ao outro obriga, em primeiro lugar, a que marquemos a nossa posição no mundo, a que nos demos a conhecer. Depois, obriga a que o outro faça o mesmo, havendo uma afirmação de espaços e, ao mesmo tempo, a demonstração de uma disponibilidade em conviver nos dois espaços individuais, tornando-os, dessa forma, num espaço partilhado, comum.

Se a língua nos aprisiona, porque, não a dominando, nos limita a expressão, o espaço comum que construímos também será menor. Se, pelo contrário, pudermos usar todas as ferramentas que ela nos dá para descrevermos o nosso mundo aos outros, então, o espaço construído será muito maior e mais diverso. Para que possamos alargar o nosso mundo linguístico é obrigatório que leiamos tudo. Não apenas documentos técnicos, jornais ou revistas. A literatura é precisa também para que consigamos perceber todas as possibilidades de expressão que a língua nos oferece. E a escrita, uma necessidade de ordem prática, sim, mas também de ordem criativa.

Com as palavras moldamos o nosso mundo. É do nosso maior interesse portanto que saibamos lidar com elas da melhor forma para que o pequeno mundo que vamos construindo através do nosso discurso seja também o melhor possível.

A apetência para as palavras facilita, mas não desculpa quem com ela não nasça. Não houvesse sido aqueles exercícios, aqueles trabalhos, os testes, as horas a estudar e a ler livros, talvez o gosto inato que a minha mãe deixou registado no livro do bebé nunca tivesse passado de uma curiosidade sem consequência. Talvez nunca tivesse conseguido escrever algo que traduzisse o que sinto e nunca tivesse sentido a felicidade de poder criar outros mundos.

Em tempo de regresso às aulas, pareceu-me importante falar da importância da língua e do trabalho a que obriga o seu domínio. E, acima de tudo, vincar a recompensa que recolhemos depois de feito o trabalho árduo: o prazer de escrever por prazer.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
6-9-2015