Há três anos Elina Fraga dizia-se arrependida de ter votado PSD. Hoje é vice de Rui Rio

Entrevista de Alexandra Tavares-Teles [publicada na Notícias Magazine, em fevereiro de 2015]

Trasmontana, herdou da família conservadora a fé católica, inscrita na doutrina social da Igreja, e o respeito pelo rigor. Na Alemanha, onde viveu a adolescência, aprendeu o valor do trabalho e da disciplina. No liceu, em Braga, descobriu a política e fez-se militante do CDS.

Em Coimbra, trocou certezas absolutas por dúvidas e insegu­rança, ganhou amigos do outro lado da barrica­da. Aos 45 anos, considera-se «exigente nos princípios, liberal nos costumes, progressista no que diz respeito a direitos, liberdades e garantias».

Incomoda-a o preconceito tanto quanto precisa da velocidade e do mar. Quis ser advogada para ter uma voz ativa, sem meias palavras.

«Quem é a Elina?» perguntavam muitos advogados quando se can­didatou. Um ano depois da tomada de posse, já todos sabem quem é a bastonária?
A Elina é uma advogada que tem a defesa dos direitos humanos no seu ADN e que tem enfrentado com determinação os comba­tes em defesa de uma cidadania ativa. Temos uma elite que tem assistido silenciada a reformas que representam recuos nos di­reitos, liberdades e garantias dos cidadãos e um retrocesso no Estado de direito. Tem de haver alguém que defenda os cidadãos e essa é a atribuição da Ordem dos Advogados. A ordem não é um sindicato. Defende os direitos e as prerrogativas dos advogados mas, sobretudo, o Estado de direito. E todos os combates que eu, enquanto bastonária, tenho travado são os combates que travei também como advogada.

Uma elite silenciada ou silenciosa?
Silenciosa e silenciada. Silenciosa porque falamos de uma atitu­de volitiva mas também silenciada porque as vozes inconformadas com o regime acabam por ser sancionadas.

Quer dar exemplos?
A história está recheada de saneamentos por discordâncias, críti­cas ou simplesmente por não alinhamento.

Há portanto um défice de democracia em Portugal?
Há um grande défice de democracia em Portugal. Até no próprio jornalismo se verifica.

Sempre teve essa noção ou adquiriu-a mais recentemente?
É um património que fui adquirindo ao longo da minha vida, mas que agora é mais forte. A OA, muito por força do anterior bastonário, ganhou uma voz importante na sociedade portuguesa. Os cidadãos veem na Ordem um baluarte dos seus direitos, pedem que denun­cie a violação de direitos individuais, económicos e sociais. Mesmo depois da triagem interna, chegam a mim, semanalmente, cerca de três mil e-mails de cidadãos que viram os seus direitos constrangidos.

Um e-mail que a tenha impressionado acima dos outros?
São dramas provocados ou decorrentes de uma crise que se abateu sobre todos, mas que teve um impacto maior nas populações mais frá­geis. Um dos e-mails que mais me marcaram foi o de um pai privado de ver o filho porque o processo aguardava há meses o resultado de uma perícia. Relata com detalhe todos os momentos do crescimento do fi­lho a que ele não assistiu para concluir que só lhe restava desistir.

Num caso desses, o que pode fazer a Ordem?
O que sempre faço: participar às entidades competentes o atraso no processo e incentivar aquele pai à resistência e à determinação.

Conseguiu desfazer a ideia de ser uma «criação» de Marinho e Pinto?
Estive seis anos com o anterior bastonário e isso anuncia desde lo­go uma afinidade. Mas somos pessoas diferentes, na forma como in­tervimos e em termos ideológicos. Dou um exemplo: Marinho e Pi­nho é frontalmente contra a coadoção; eu sou absolutamente a favor. Há um conjunto de princípios que o anterior bastonário defende e que eu defendo e outro que nos distingue. Eu assumi este mandato para, sobretudo, unificar a OA e reforçar a sua capacidade de inter­venção. Depois de um momento de rutura e democratização do aces­so aos órgãos da OA por qualquer advogado, pareceu-me importante pacificar a Ordem. Julgo que, neste momento, esse trabalho está feito.

Com grande ajuda da ministra da Justiça.
É verdade. Ao atacar os direitos de cidadania, nomeadamente com a reforma do mapa judiciário, o Ministério da Justiça pôs em causa um núcleo essencial de direitos que, independentemente de muitas diver­gências, é respeitado por toda a advocacia. E os advogados uniram-se. Tal como estão unidos a favor de uma advocacia livre e independente, e contra o projeto de estatuto do advogado, da autoria do ministério.

O que trouxe de novo à Ordem?
Uma nova forma de estar, mais dialogante com quem pensa de for­ma diferente e mais cooperante com os demais operadores judiciá­rios. Sem pôr em causa a defesa intransigente dos pilares da advoca­cia, entendi que, feita a rutura era necessário encontrar pontos de união que ajudassem a levar a cabo as reformas da justiça. Nessa li­nha, consegui desenvolver relações privilegiadas com as magistra­turas, judicial e do Ministério Público. Um diálogo profícuo, que não foi conseguido apenas com o ministério da Justiça, que continua autista, com prejuízos sérios para o Estado de direito.

Que justificação encontra para este braço-de-ferro? Afinal a ministra também é advogada.
A ministra da Justiça não tem no seu ADN os valores da profissão. Não é independente e está subjugada a interesses corporativos. Faz re­formas que visam exclusivamente o favorecimento desses interesses.

Exatamente que interesses e de quem?
Os interesses instalados das grandes sociedades de advogados, de­fensoras dos meios alternativos de resolução de litígio e de uma justiça privada. Querem a justiça ao serviço dos seus interesses. Para atingirem esse fim contam com a ministra.

A arbitragem, a mediação, os julgados de paz, não ajudam à celeridade processual e a uma justiça em tempo real mais eficaz?
A celeridade processual não se deve erigir à custa da eliminação de garan­tias dos cidadãos. Uma justiça que não seja igual para todos, que seja forte com os fracos e fraca com os fortes, pode ser feita em tempo real, mas encerra sem­pre uma sua denegação. É uma justiça que se impõe nas estatísticas, mas que agrava ou enfatiza as desi­gualdades sociais.

Da ordem do dia: prisão preventiva, violação do segredo de justiça, escutas telefónicas. Estamos a regredir em direitos fundamentais?
Todos os relatórios internacionais apontam para o abuso da prisão preventiva em Portugal. Esse abuso resulta não tanto de uma fragili­dade da lei, mas da falta de observância dos requisitos a que deve obe­decer a prisão preventiva. Em Portugal primeiro prende-se e só de­pois se investiga. É portanto importante, e urgente, que os próprios advogados se insurjam contra o que se passa. A prisão preventiva não pode ser usada para mobilizar e legitimar as in­vestigações que estão a ser feitas. É por isso, de resto, que se verificam fugas de informação, ci­rúrgicas, para a comunicação social. É preciso relembrar que a violação do segredo de justiça é crime e que se essa violação favorece a acusa­ção então o que se pretende é a legitimação da ação da investigação através de apedrejamen­tos na praça pública. É inadmissível.

E apesar dos vários inquéritos, não há um único condenado por violação de segredo de justiça.
Em grande parte por falta de vontade políti­ca. Se essa vontade existisse, facilmente os au­tores seriam identificáveis ou identificados. Pelo menos nos processos em que a violação do segredo ocorre num momento anterior à par­ticipação no processo dos arguidos e dos seus defensores. Aí, não há dúvida: a violação par­tiu da investigação criminal.

Paula Teixeira da Cruz confessou recentemente que fala para o telemóvel como se falasse para um gravador. Quer comentar?
Das duas, uma: ou a senhora ministra está a ser investigada por um crime, e portanto há escutas legais ao seu telemóvel, ou está a con­fessar ao país que tem consciência de que há escutas ilegais. E o que tem feito a ministra para combater aquilo que é uma intromissão in­tolerável e um atentado contra a vida privada? Em Portugal, só um juiz pode validar uma escuta mas hoje escuta-se qualquer pessoa com arbítrio praticamente total.

A propósito do valor da segurança, em França, a extrema-direita relan­çou a questão do referendo à pena de morte. É um caminho impossível ou acredita que corremos o risco de um retrocesso?
Temo seriamente que alguns direi­tos cristalizados e que consideráva­mos consolidados no sistema jurídico venham a ser postos em causa tendo o combate ao terrorismo como pretexto. E o terrorismo não pode servir de pre­texto a esses retrocessos, sob pena de ser o carrasco da nossa civilização.

A Ordem opôs-se duramente ao novo ma­pa judiciário. Como está a correr o pro­cesso de implementação da reforma que entrou em vigor em setembro de 2014?
Com o colapso do Citius, o novo mapa judiciário só agora está a ser implementado no terreno. E, portanto, também só agora começam a sentir-se as sequelas. De resto, o colap­so da plataforma foi o que de melhor podia ter acontecido à ministra da Justiça, já que a discussão à volta do crash relegou para segundo plano a questão fundamental que é o afastamento do cidadão da jus­tiça. Assistiu-se ao encerramento e à desqualificação de tribunais, à falta de planeamento da reorganização e é evidente a falta de recur­sos humanos. Mesmo considerando conformes à realidade os dados apresentados pelo Ministério da Justiça, faltam cerca de mil e tal funcionários judiciais e o número inadequado de juízes, sobretudo nos tribunais especializados, impossibilita a tramitação dos proces­sos. Temos tribunais com dois juízes para oitenta mil processos, o que significa o colapso. Com esta reforma, o cidadão mais carencia­do deixou de poder aceder aos tribunais. Há muitas queixas e recla­mações de processos que estão paralisados. Mas a ministra da Jus­tiça alienou-se da realidade, vive num mundo virtual e não perce­be que a justiça não serve interesses estatísticos, mas decide vidas e dramas humanos.

Votou PSD. Paula Teixeira da Cruz foi uma desilusão?
Estou muito arrependida de ter votado PSD e a ministra foi uma profunda desilusão. Pela circunstância de ela ser mulher e advogada nutri a esperança de que fosse capaz de reformar no sentido do refor­ço das garantias do cidadão, mas contribuindo para a celeridade dos processos e a eficiência da justiça. Nada disso fez, contrariando o seu próprio discurso de tomada de posse. Nessa altura, condenou a arbi­tragem, a privatização da justiça, defendeu o acesso igualitária aos tribunais e as garantias processuais dos arguidos mas, depois, infle­tiu em absoluto o seu discurso, legislando em sentido oposto.

O que diria hoje dela?
Neste momento, é uma pessoa perdida. Acusa o desgaste de quem não tem com­petência para o exercício das funções que desempenha. Não soube assumir a sua responsabilidade política na reorga­nização judiciária. Primeiro, sacudiu as culpas para uns técnicos de informática, agora sacode as culpas para o presidente do Instituto de Gestão Financeira. Nun­ca disse a verdade ao país. E a verdade é que foi avisada reiteradamente da possi­bilidade de a plataforma colapsar, a ver­dade é que tinha uma noção inequívo­ca do retrocesso que iria resultar para os cidadãos e empresas, tinha consciência absoluta da paralisação a que condenava os tribunais. Ainda assim fez esta reforma. E com o objetivo, na minha opinião, de servir apenas interesses alheios aos dos cidadãos e aos da justiça.

Estatutos dos advogados: até onde pode ir a ordem nesta batalha con­tra o projeto da ministra?
A senhora ministra pretende aprovar um estatuto da Ordem dos Advogados, sem ouvir os advogados e os seus órgãos dirigentes. Pior: tendo rejeitado tomar em consideração o projeto do anterior basto­nário com o argumento de que não fora discutido pela classe, pro­põe-se agora impor à classe um documento da sua exclusiva auto­ria. O empenho desta ministra na menorização da advocacia conti­nua mas a OA não desiste. Pediu a prorrogação do prazo e fará chegar aos grupos parlamentares o seu contributo para melhorar o projeto e com ele dignificar a advocacia.

Acredita na possibilidade de a AR chumbar o documento?
Estou convencida de que um projeto que remete para legislação re­vogada, para artigos que não existem, que se apresenta com normas que entram em contradição entre si, não será aprovado na AR. Ou en­tendemos que em Portugal basta haver um governo, que decide so­zinho e aí dissolve-se a AR poupando alguns milhares ao Estado, ou entendemos que é necessário um escrutínio mais rigoroso na casa da democracia e, nesse caso, os deputados não podem hipotecar as suas consciências aos interesses políticos e partidários.

Na advocacia a oferta é hoje superior à procura. Como se resolve isto?
Desincentivando a frequência de um curso que manifestamente tem saídas profissionais diminutas. Se o poder político continuar a permitir às universidades que estabeleçam livremente o número de licenciados em Direito, a advocacia poderá ficar condenada. O fenó­meno da massificação também se adensou com o ataque selvático ao que é o património da advocacia e com a perda de identidade das pro­fissões jurídicas, enfatizado com as políticas do Ministério da Justi­ça. Esta invasão de fronteiras, além de criar insegurança no cidadão, gera atropelos.

Sempre quis ser advogada?
Advogada, desde sempre.

A advocacia é uma tradição familiar?
Não. O meu pai foi empresário, a minha mãe professora primária.

Porquê a advocacia?
A consciência definitiva surgiu na adolescência. Queria uma pro­fissão que me permitisse manter a independência, fazer as ruturas que a minha consciência me impusesse. Fui sempre muito irreve­rente e parecia-me que os advogados eram vozes inconformadas. Como disse há pouco, hoje temos uma determinada elite que está no mais profundo dos silêncios, mas há trinta anos os advogados não se calavam e denunciavam os atropelos ao Estado de direito.

Foi educada numa família católica e con­servadora. De onde vem a irreverência?
Da minha família herdei o respei­to pela dignidade da pessoa humana – valor que é parte essencial da doutri­na social da Igreja, que, como católi­ca, partilho –, e o conservadorismo, ou seja, o culto pelo rigor, pela exigência, pela disciplina. Um património que fui cultivando ao longo da vida, aber­ta desde sempre à evolução. E evoluí, o que só contribuiu para o meu enrique­cimento. Hoje, defino-me como muito exigente nos princípios, li­beral nos costumes e muito progressista no que diz respeito a direi­tos, liberdades e garantias.

O rigor nos princípios não é um exclusivo dos mais conservadores ou acha que é?
O rigor nos princípios deveria ser um imperativo de consciência de todos.

Fale-me da menina irreverente, a filha do meio.
Não tenho jeito nenhum para falar de mim. Era irreverente, tei­mosa, obstinada, extrovertida. Leitora compulsiva, até por força de ter uma mãe professora. Sempre quis compreender a razão de ser das coisas, nunca aceitei factos consumados ou opiniões consolida­das só porque emanavam de alguém com autoridade. Sempre ques­tionei, desde pequena, até a minha mãe em relação às posições dela.

E os pais lidavam bem com a irreverência da filha?
Ser conservador não significa em si mesmo ser intolerante. A tole­rância não é ideológica. Os meus pais, sobretudo a minha mãe, sem­pre incentivaram esse espírito crítico. De resto, tenho com a minha mãe muitas afinidades, identidade em termos de personalidade e também ela me lançou muitos desafios. Basta dizer que foi a primei­ra mulher a vestir calças em Valpaços, um meio pequeno e muito conservador, ainda mais há cinquenta e tal anos.

Nasceu em Valpaços (1970) mas com apenas com 4 anos emigrou com os pais para a Alemanha. Essa partida, precisamente no ano da revolução, está relacionada com o 25 de Abril?
Não, a nossa partida esteve ligada com o desafio que a minha mãe aceitou de lecionar Português no estrangeiro.

Regressou a Portugal em 1984, tinha 14 anos. Como foi deixar uma vida, os amigos e a escola, para regressar a Valpaços?
Foi a minha primeira rutura, cortar laços com todos os meus ami­gos, com dez anos de amizades e de vivências. Havia uma disciplina, um estímulo ao trabalho e à pratica de desportos que em Portugal não me apercebi de que existisse.

Foram portanto anos duros para a adolescente…
Sim, bastante duros. Mas foram apenas dois anos. Depois, fui para Braga frequentar os 10.º, 11.º e 12.º anos e a cidade, por força do polo universitário, era já um centro urbano com alguma vivacidade, um meio mais próximo daquele que tinha na Alemanha.

Foi para a compensar pela rutura que o pai lhe ofereceu uma moto no ano do regresso?
Foi o melhor presente que me podia ter dado e está ligado a muitas caraterísticas da minha personalidade. A minha mãe ficou à beira de um ataque de histeria por temer pela minha segurança.

As estradas transmontanas eram muito difíceis. Nunca se magoou?
Eram estradas complicadas, sim. Fiz milhares de quilómetros de moto – refleti muito em cima daquela moto – mas nunca me magoei. Ganhei a independência de poder ir para onde queria, numa altura que ainda não tinha idade para conduzir outros veículos.

Gosta de velocidade?
Gosto muito. E já tive algumas multas por excesso, confesso.

Continua a andar de moto?
Hoje já não.

Vai para Braga sozinha ou com os pais?
Comecei a viver sozinha com apenas 16 anos. Ia a casa nas férias apenas. De Valpaços a Braga eram seis horas de autocarro.

É em Braga que começa a interessar-se por política?
Em Braga, por força do convívio com algumas colegas, que fre­quentavam o curso de Humanidades, intensifiquei o meu gosto pela literatura e comecei a interessar-me pela política. Participei, nessa altura, nos primeiros comícios e campanhas eleitorais.

O que a levaria mais tarde a trocar o CDS pelo PSD?
Fui para o CDS motivada pela educação que me foi dada pela mi­nha família. Quando deixei de me identificar, saí. Não gostaria de dizer mais do que isto.

Segue depois para a Universidade de Coimbra. Que expetativas levou?
Vivi intensamente Coimbra e o espírito académico. Vivia numa ca­sa com outras colegas mas tomava as refeições numa república. Meio estudantil muito próprio, dado a grandes tertúlias e onde imperava um pensamento considerado de esquerda. O meu primeiro desafio foi dar conta de outra visão das coisas. Desde logo, reivindicar o di­reito de ouvir pessoas conotadas com a direita na televisão. Sempre que Freitas do Amaral aparecia no ecrã logo se apagava a televisão.

E foi bem-sucedida?
Em Coimbra todas as discussões demoravam várias horas. Ainda que fossem sobre o sexo dos anjos, entravam pela noite dentro. Houve uma discussão, irremediavelmente muito longa, mas consegui. Devo acrescentar que saí dessas discussões muito mais tolerante.

É em Coimbra que se vai tornando progressista em matéria de direitos?
O contacto com pessoas que pensavam o mundo de forma diferen­te da minha fez-me perceber que é na diversidade de opinião que nos enriquecemos como pessoas e seres humanos.

Dê-me um ou dois exemplos do que mudou na maneira de olhar para os outros e o mundo.
Deixei de ser tão fundamentalista na defesa do que pensava. As cer­tezas absolutas com que entrei em Coimbra foram substituídas por muitas dúvidas e até inseguranças. Tornei-me tolerante, com mui­ta vontade de desbravar o que não conheço ou diverge do que penso.

É a segunda mulher na história da Ordem dos Advogados [a primeira foi Maria de Jesus Serra Lopes]. Mas há muitas mulheres na advocacia.
Sou confrontada diariamente, em ce­rimónias públicas, nas quais se encon­tram os representantes do poder e outras pessoas influentes, com essa realidade: duas ou três mulheres a contrastar com cem ou duzentos homens. Temos ainda um longo caminho a percorrer e eu, co­mo bastonária, tenho a obrigação de aju­dar também nesse processo. A discrimi­nação em função do género é uma reali­dade e o feminismo continua a fazer todo o sentido como luta pela af‍irmação de uma verdadeira igualdade. É preocupan­te que ainda tenhamos de ser feministas. Significa que a mulher ainda é menorizada na família, no emprego e se participa na política é porque se impõem quotas, um mal necessário, enquanto perdurar a discriminação em função do género.

Qual é a marca que gostava de deixar na ordem?
Quando acabei o curso, aos 22 anos, o meu sonho era fazer uma rutura com os poderes instituídos e dar um contributo cívico para melhorar o mundo. Apesar de hoje estar consciente dos constrangi­mentos e das dificuldades – e até das perseguições – que se colocam ao sonhador, mantenho esse sonho ativo.

É da geração de 1980. Quais os acontecimentos mundiais contempo­râneos que mais a marcaram?
O desaparecimento de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa e a queda do muro de Berlim foram seguramente dois deles.

Sá-carneirista?
Não sou dada a ídolos mas Sá Carneiro foi uma inspiração, quer como político quer até pelo exemplo de vida. Enfrentou muitos poderes instituídos e, sobretudo, enfrentou o preconceito.

É verdade que, sendo ex-CDS e militante do PSD, considera a Consti­tuição «uma das obras mais belas que temos»?
A Constituição é uma das obras mais belas que temos e só tenho pena de que o texto constitucional seja visto por alguns como um entrave ao desenvolvimento. É o contrário, a matriz de respeito pe­la dignidade humana deve continuar a ser o grande motor da nos­sa sociedade.

Prevê, por exemplo, o acesso de todos à justiça. Deve ser alargada a base do apoio judiciário?
Sem dúvida. Temos uma classe média que, esmagada pelos impos­tos, obrigada a pagar propinas nas escolas e taxas moderadoras na saú­de, está sem acesso à justiça. Isto porque se entende que quem ganha quinhentos euros vive bem e portanto não tem direito a apoio judici­ário. É urgente criar um critério que, caso a caso, de forma concreta, avalie se o cidadão tem ou não condições para pagar as custas judiciais.

Onde se vê daqui a cinco ou dez anos?
Em Portugal, a continuar o meu percurso profissional de advogada sensível à função social da advocacia, profissão de interesse público e que deve também prestar um serviço à comunidade.

E de regresso a Mirandela, onde exercia antes de ser bastonária?
Nunca fiz essa reflexão. Tal como ser bastonária da Ordem dos Ad­vogados não foi um projeto cultivado, apenas um desafio que quis en­frentar. Nunca programo a vida a médio ou longo prazo. Nem a profis­sional. Tenho capacidade para exercer advocacia em qualquer lugar.

Não decidiu então se vai fazer um segundo mandato?
Não sei ainda.

De advogada em Mirandela para bastonária em Lisboa. O que mudou?
Perdi qualidade de vida. Basta pensar nas filas de trânsito, mas ga­nhei na oferta cultural, praticamente inexistente no interior do país. A demo­cratização do acesso à cultura é um pilar essencial para a formação de uma cons­ciência de cidadania. Se reparar, em Por­tugal, pagamos os impostos que pagam os cidadãos nórdicos para termos os be­nefícios que há nos Estados Unidos, on­de se paga dez por cento de impostos. O que também mudou, por força do cargo e até das interpelações que me chegam, foi a minha capacidade de intervenção. E é aí que me tenho apercebido do défi­ce de cidadania em Portugal. Os portu­gueses estão desmotivados e conformam-se com tudo ou quase tudo.

Como é o seu dia-a-dia?
O meu dia-a-dia mudou apenas parcialmente. Continuo a traba­lhar como trabalhava. Sempre fui uma trabalhadora compulsiva.

E tempo para si?
Devo dizer que a senhora ministra da Justiça tem contribuído pa­ra que a bastonária passe mais horas do que deveria na ordem a ela­borar pareceres e em reuniões. Temos recebido projetos do Ministé­rio da Justiça em que nos são dadas, para pronúncia, 24 horas quando o prazo pode ir até dez dias. O que significa que a bastonária e alguns membros do Conselho Geral são obrigados, por vezes, a fazer diretas.

Quando está muito cansada, o que é que a retempera?
O mar. O mar relaxa-me.

E contudo em Valpaços, Braga, Coimbra, Mirandela, e até na Alema­nha, vivia longe do mar. Ou será por isso mesmo?
Talvez por isso. O mar tem muito que ver com que nós somos, as nossas pulsões, forças e fraquezas. Quando estou contrariada ou cansada procuro o mar. Por vezes basta o tempo de tomar um café a olhar para o mar. A leitura também me relaxa. E esporadicamente vou ao cinema, quase obrigada pela minha filha.

Vive em Lisboa, a filha?
Sim, tem 18 anos e está a estudar Engenharia Física Tecnológica.

O que é que a irrita e mais a incomoda?
O preconceito, a intolerância e a discriminação. Não consigo com­preender como pode a sociedade portuguesa do século XXI revelar indícios tão claros de intolerância e de discriminação, muitas ve­zes praticadas por quem farisaicamente prega a igualdade e a liberdade. A hipocrisia de quem não tem coragem para se afirmar preconceituoso e intolerante, tira-me do sério. Sou uma pessoa muito tolerante e desde que convencida de que estava errada estou sem­pre disponível para mudar de ideias e isso tem reflexos na minha pró­pria evolução. Só sou intolerante com a intolerância.

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BASTIDORES
SEM PERDER O FOCO

Usa frases precisas, seguindo sempre o fio do raciocínio, sem repetições, pausas, inflexões, mudanças de tema ou bordões linguísticos. Não deixa cair uma palavra fora do contexto nem esquece o gravador em cima da robusta mesa semioval, ma­deira nobre iluminada por dois candeeiros de estilo holandês de oito braços, referências da sala Adelino da Palma Carlos, bastonário de 1951 a 1956, cujo espólio foi doado à ordem.

Elina Fraga raramente se deixou surpreender. Menos à vonta­de apenas nas questões mais pessoais, avessa a falar de si e do seu mundo para lá do direito e da ordem. No primeiro andar do Palácio Regaleira, edifício setecentista no Largo de São Domingos, em Lisboa, sede da ordem, disponibilizou-se para uma conversa longa, seguida de uma não menos longa sessão fotográfica. E, apesar de vários atrasos e de ainda a esperar uma viagem ao Porto, sem nunca consultar o relógio.