Foi o primeiro filme em que entrei. Ela está ao piano, numa tasca espanhola. Há um ingénuo inglês, de lacinho, vidrado nela, agarrado ao copo. Quando ela começa a cantar, «oh, how am I to know…», dois clientes de boné viraram-se, enquanto o inglês confirma que não é ele o eleito. É então que apareço, de suspensórios e bandeja, direito ao balcão. Agradecia que apreciassem a minha soberba atuação: nem lhe deito um olhar! Ela, Ava Gardner, a mais bela das mulheres (leiam esta frase na sua simplicidade, sem intenção de efeito, só facto, como se eu dissesse: «Hoje está calor») e não a olho. O inglês, esse, põe veneno no copo, o que vai matá-lo umas cenas adiante.
Fazíamos o filme na primavera de 1950 (Pandora e o Holandês Voador, cá passou como Caixa de Pandora), em Tossa de Mar, porto pesqueiro da costa catalã. A pianista chamava-se Pandora, como a deusa grega com todos as boas virtudes (e as melhores eram as piores) que vive para atazanar os homens. Foi o inglês suicida, seguiu-se um corredor de automóveis que aceitou o repto dela e atirou o bólide ao mar… O realizador (Albert Lewin) prometeu-me um bom papel – o rapazito luandense que se apaixonou pela pianista – mas eu recusei. O filme da minha vida com a Ava Gardner haveria de ser eu a ditar e, isso era seguro, eu não seria mais um. Perante a recusa, lá tiveram de meter o holandês voador no título e no enredo. Apareceu o James Mason com a maldição que lhe deitaram. Ele anda pelos mares sem nunca poder morrer, até uma mulher aceitar morrer de amor por ele. O sentido do filme estava encontrado: a história de uma mulher incapaz de amar e de um homem incapaz de morrer.
Aqui chegados, um parêntese. O verdadeiro holandês voador era eu, sem essas crendices de atravessar séculos em navios–fantasmas. Bem mais sóbria e agarrada à realidade era a minha história à volta de Ava. Em 1941, eu vivia em Nova Iorque. Trabalhava como ajudante do fotógrafo Larry Tarr, com loja na Quinta Avenida. Eu revelava as fotos no quarto dos fundos, enquanto o Larry sonhava acordado com a mulher, Beatrice Gardner. Um dia, ele disse que a sua cunhadinha vinha de férias, lá da terra, na Carolina do Norte. Quando a miúda chegou, Larry deu-me umas fotos para revelar. Ao imprimi-las, tive uma epifania. Duas fotos, com vestido estampado e chapéu sulista de palha, e com blusa clara e enfeite nos cabelos – em ambas, ela. Nunca mais recuperei. Enquanto Larry sonhava com a mulher, expus as fotos da cunhada na montra. O resto é história. Um agente da MGM informou Hollywood e esta ficou extasiada com Ava.
Claro, em Tossa de Mar havia também um toureiro, Mario Cabré. Em Los Angeles, o marido, um tal Frank Sinatra, cabeceava as paredes. Cabré acabou a fazer um livro de poemas sobre ela. Hemingway, quando Ava tomou banho nua na piscina dele, em Havana, deu ordens para não se mudar a água durante meses. Conto isso para admirarem ainda mais a serenidade com que atravessei a nossa relação. Ela morreu fez nesta semana 25 anos. Há anos, vinha eu de Raleigh, a capital da Carolina do Norte, pela 70, era outono, tempo de apanha do algodão. Os camiões atiravam-me pequenas sementes negras que vogavam pela estrada por causa dos tufos de branco puro. Na minha terra africana chama–se «camujinha» a esse nevar. Percebi os acenos, Ava, mulher de encantar e fugir… Atravessei a tua pequena cidade natal, Smithfield, sem parar.
No ano passado, pelo centenário do poeta galês, a BBC passou imagens de Dylan Thomas (Bob Dylan chama-se assim em sua homenagem), a ver as filmagens de Pandora e o Holandês Voador. Na cena do bólide a ser atirado ao mar, Dylan Thomas está lá, na praia de Tossa de Mar – embora tenham de caçar as imagens dele à lupa. Quando eu fizer cem anos, a RTP pode usar aquela cena, eu e Ava Gardner fazendo que nos ignoramos. Oh, how am I to know…