Como seríamos se não nos conseguíssemos ver ao espelho? Se não houvesse espelhos, ou câmaras, apenas o calmo reflexo da água quando nos debruçamos sobre ela, ou o brilho no olhar dos outros quando nos miram?
Quando me observo de fora, retiro conclusões sobre o que está por dentro? Obrigo o interior a ajustar-se ao exterior, ao invés do contrário? Quereremos ver o que os outros vêem em nós, porque não acreditamos nas suas palavras?
Talvez só no momento em que conseguimos espreitar com que traços se faz o nosso rosto, com que linhas se desenha o nosso corpo, consigamos formar uma opinião que nos satisfaça. Confiamos mais nos olhos do que na mente. Ambos observam, mas as suas perspectivas são diferentes. Os primeiros vêem para fora, a segunda, para dentro. Como para dentro está sempre escuro, desconfiamos das conclusões a que chega.
Afinal de contas, a autodescrição é um exercício estrambólico. Como descrever aquilo dentro do qual nos encontramos? Sem luz, parece impossível. Paredes a toda a volta e apenas dois buracos pequeninos para espreitarmos o mundo lá fora. Não há portas nem escapatória e a única luz que entra é a que se consegue escapulir por entre os olhos.
Poder-se-á então pensar que a única luz que vemos é emprestada lá de fora. Cá dentro, apenas escuridão. Mas, menosprezando aquilo que conseguimos ver com a mente, nunca nos apercebemos de que há uma luz cá dentro que se acende se a soubermos acender. É ao procurar o interruptor que muitas vezes nos perdemos e desistimos. Afinal, sempre temos a luz que vem de fora e que nos permite navegar à vista. E os espelhos, que nos devolvem a imagem própria completa, dos pés à cabeça, sem necessidade de esforço intelectual e espiritual. É uma imagem preguiçosa, se assim se quiser dizer, porque não houve qualquer esforço para a sua obtenção. Bastou-nos olhar o espelho e confiar cegamente no que ele nos mostrou.
Confiamos mais nesse espelho do que nas palavras de quem nos ama. Confiamos mais nas lentes das câmaras com que tiramos auto-retratos do que naquilo que sentimos ser cá bem no íntimo.
Por isso é que não conseguimos chegar ao interruptor e acender a luz aqui dentro. Por que não cremos em nós enquanto não nos virmos por fora. Até que sejamos confrontados com o nosso reflexo, não existimos para nós. Parece física quântica, mas é apenas um engano.
Será sempre equivocada a imagem que se constrói a partir de um reflexo. Basta pensar no mito da caverna, de Platão. Se acharmos que vemos a verdade ao ver os vultos iluminados pela fogueira, cujos corpos nunca conseguimos encarar por incapacidade física, então vivemos enganados. Nunca chegaremos à verdade enquanto ficarmos especados a olhar para a parede da caverna e para as silhuetas pintadas pelas labaredas.
Se o nosso destino é nunca conseguir ver a verdade, porque não tentamos senti-la? O escuro não esconde apenas monstros e filmes de terror. Também pode esconder um certo tipo de luz que podemos não ver, mas que sentimos. É esquisito o conceito, pois sim. Uma luz que não se vê, mas que se sente, quase parece sinestesia. Ou poesia, se se preferir.
O mundo não está para poetas, já se sabe. Vai daí que os reflexos nos guiem mais do que a substância. O que é estranho, se se pensar que nem com os nossos reflexos temos uma convivência salutar. Pelo contrário. De tanto nos vermos, acabamos por perceber cada imperfeição. Já se sabe que não há nada que nos desagrade mais do que sermos confrontados com a nossa própria imperfeição. Pois, então, assim andamos, infelizes por nos vermos imperfeitos e perseguindo a perfeição estética, em vez da ética. Talvez não possamos compreender que, ao fugir da imperfeição, nunca alcançaremos a única verdade possível: a que está cá dentro.
Talvez não possamos compreender que, ao fugir da imperfeição, nunca alcançaremos a única verdade possível: a que está cá dentro.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
30-8-2015