Carros com software de cabeça quente

Notícias Magazine

A cabo-verdiana ilha da Boa Vista é quase redonda, 31 km de norte a sul, 29 de leste a oeste, tem poucas estradas e cinco mil habitantes. Muito antes disso, quando não havia asfalto e só dois carros na ilha, os dois encontraram-se, entre Sal Rei e Rabil, e chocaram. Dois é uma conta conflituosa na Boa Vista. Um dos seus filhos, Daniel Filipe (1925-1964), é o autor do famoso poema A Invenção do Amor. O que eu beijei a pretexto dele, o poema. Um homem e uma mulher é a história. A tropa e as polícias procuravam-nos e os jornais anunciavam: “É preciso encontrá-los/ Antes que seja tarde.” No fim do poema, ainda os procuravam: “A polícia e o exército estão a postos/ Prevê-se para breve a captura do casal fugitivo.”

Quero, porém, falar duma história mais moderna. No fim de junho, a 23, uma terça-feira, ia um Audi Q5 pela estrada San Antonio, em Palo Alto, Califórnia. Estava uma pessoa no carro mas, reparem, sentado no lugar do passageiro. O leitor mais atento é capaz de se ter posto de sobreaviso quando escrevi Palo Alto. Claro, em Silicon Valley, a região das modernices: o Audi era um dos dois protótipos da Delphi Automotive, empresa que anda a testar carros sem condutor. Equipado com lasers, radar, câmaras e um computador com software que o põe a conduzir-se sozinho. Naquela estrada, naquele dia, o nosso Audi esperto tomou todos os cuidados para mudar de faixa e fazer uma ultrapassagem. Iria ser histórico.

Acontece que o carro da frente era um Lexus RX400 que pertencia à companhia rival Google, também equipado com a parafernália que lhe permite andar sozinho. Este, um dos vinte protótipos da Google na Califórnia, nem com passageiro humano ia, a solidão era completa. E o que fez o tal Lexus, tão solitário por dentro? Comportou-se como um daqueles americanos dos anos 1970, fiéis a Detroit, e que insultavam, de cima do seu Chevrolet ou Buick, os traidores que compravam carros estrangeiros. O que foi, pelo menos, incoerente, porque, se o Audi era alemão, o Lexus é da Toyota.

Não interessa: com o software de cabeça quente, o Lexus do Google guinou para a esquerda, obrigando o Audi a abortar a ultrapassagem. Não houve choque, mas ficou para a História como o primeiro incidente rodoviário entre dois automóveis sem condutor. Evidentemente, não vale pelo romantismo o choque da ilha da Boa Vista. Mas há-de ficar para os anais científicos como aquele facalhão que um australopiteco afiou para limpar as unhas e acabou enfiado no estômago dum contemporâneo coletor.

Aqui chegados, há que rebobinar: a versão do quase acidente foi dada à agência Reuters pelo passageiro do Audi, engenheiro da Delphi Automotive, rival do Google. Os automóveis já conseguem andar sozinhos mas ainda não sabem fazer declarações de seguro aldrabadas. Mas vamos dar de barato as culpas, que pouco interessam, comparadas com a magnitude do (quase) acidente. Até agora, os acidentes com carros sem condutor aconteceram só com outros carros com condutor humano. A maioria desses acidentes, porque o carro autoconduzido parou num cruzamento ou num semáforo, e foi abalroado por trás. E, em todos os casos, segundo o testemunho insuspeito do Departamento Rodoviário da Califórnia, nunca a culpa foi dum protótipo sem condutor.

Quer dizer, desta vez, houve culpa da máquina. Da que pretendia ultrapassar ou da que não se deixou ultrapassar, não interessa. O importante é que surgiu o primeiro indício de humanização do computador com software encartado, que reagiu como o computador HAL, de 2001-Odisseia no Espaço. Em 2015, odisseia na estrada San Antonio, Palo Alto, pela primeira vez, de um carro vazio e conduzido surgiram dois dedos, indicador e anelar recolhidos, molduras do dedo médio teso e bem mostrado pelo retrovisor! Como se diz «chega pra lá, palonço!», em linguagem de programação?

[Publicado originalmente na edição de 12 de julho de 2015]