Biombos bárbaros

São peças de arte nipónicas que representam os «bárbaros do Sul» e podem atingir, em leilão, quatro a cinco milhões de euros. A historiadora Alexandra Curvelo fez a radiografia de 13 dos mais notáveis exemplares mundiais, com passagens por Lisboa e Porto.

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Nem de propósito. No ano em que se assinalam seis séculos do início da expansão portuguesa, 13 tesouros artísticos mundiais que ajudam a entender a chegada dos portugueses ao Japão e o seu quotidiano em terras nipónicas durante boa parte do calendário dos Descobrimentos são descodificados. A responsável é a investigadora Alexandra Curvelo, autora de Obras-Primas dos Biombos Nanban, lançado na semana passada.

«Quando tentamos encontrar imagens que representem os portugueses e os luso-asiáticos na Ásia dos séculos XVI e XVII, não temos praticamente nada feito pelos próprios», diz a professora do Departamento de História de Arte da Universidade Nova de Lisboa. «Os biombos nanban são, por isso, uma das aproximações visuais que devem ser cruzadas com o registo escrito da literatura de viagens portuguesa.»

É assim desde o primeiro desembarque na ilha de Tanegashima, em 1543, quando os japoneses nos definiram como nanban-jin («bárbaros do Sul»). A nós e a todos os comerciantes e missionários europeus do Sul – espanhóis, italianos mas sobretudo portugueses – que aportavam a Nau do Trato em território nipónico. «Bárbaros no sentido de estrangeiro», explica Alexandra Curvelo, «embora tivesse havido também uma perceção de que estavam perante europeus diferentes do ponto de vista civilizacional, bárbaros no sentido de pouco polidos, pouco educados, que comiam com as mãos, falavam alto e comportavam-se de uma forma um pouco desregrada.»

Se as expressões nanban («não-japoneses») e nanban-jin («bárbaros do Sul») começam a ser utilizadas logo no século XVI, só a partir do início do século XX a historiografia japonesa formaliza o uso de «arte nanban» (nanban bijutsu). O mesmo é dizer «arte que surge no Japão decorrente da presença dos nanban-jin no território», o que inclui diversos suportes, desde peças lacadas, peças de cerâmica e de metal até aos hoje célebres biombos. «Tudo aponta para que os primeiros biombos nanban com a representação dos nanban-jin tenham surgido no final do século XVI. Vemos biombos deste tipo aparecer para lá da expulsão dos missionários (1614) e da expulsão dos portugueses (1639). E no século XIX há um reavivar do interesse, com exemplares datáveis de 1800.»

O capítulo oriental dos Descobrimentos portugueses tem a partir de agora uma nova fonte bibliográfica: Obras-Primas dos Biombos Nanban, álbum assinado por Alexandra Curvelo, com publicação garantida pelas Editions Chandeigne em português, francês e inglês. É uma seleção de 13 dos 91 ou 92 (não há certezas) biombos referenciados em todo o mundo. «A escolha é pessoal. Um dos critérios foi incluir os que podem ser vistos em Portugal.» Trata-se, afinal, de um pequeno universo de cinco exemplares (três deles completos em forma de par) divididos entre Lisboa – Museu Nacional de Arte Antiga (dois pares e um biombo) e Museu do Oriente (um biombo) – e o Porto – Museu Nacional Soares do Reis (um par). «Temos o privilégio de ter em Portugal um conjunto notável, estando a maior parte no Japão.» Ao longo de 176 páginas, a historiadora esmiúça os que foram adquiridos pelo Estado português, bem como os expostos nos museus de Osaca, Kobe, Tóquio e Nagasáqui, Victoria & Albert Museum (Londres), Rijksmuseum (Amesterdão) e Musée Guimet (Paris).

Contas feitas, falta um. O 13º exemplar, ao contrário dos restantes, faz parte de uma coleção particular arrematado num leilão da Christie’s em março de 2011, em Nova Iorque. A representação da Nau do Trato e dos nanban-jin, atribuído a Kano Naizen (1570-1660), foi vendida por 4 786 500 dólares (cerca de 4,35 milhões euros). Alexandra Curvelo não embarca em avaliações monetárias, mas incluiu esta obra «de qualidade excecional» no álbum porque a conhece bem – do tempo em que foi comissária de uma exposição de arte nanban no McMullen Museum, em Boston – e porque, acrescenta, é a prova de como os biombos «continuam a circular no mercado de arte internacional». Não é caso único. Apesar de a maioria conhecida figurar em museus, restam uns tantos para alimentar os sonhos de colecionadores, também em Portugal. «Não sei precisar ao certo quantos são», acrescenta a especialista. Quando o anonimato é exigido, os biombos privados só entram na contabilidade oficial através de canais informais.

A curiosidade de Alexandra Curvelo por estas pinturas montadas em armações leves de madeira – preenchidas no interior com camadas de papel, com dimensões médias de 1,70 metros (altura) por 3,80 metros (largura), que funcionam aos pares e têm como protagonistas os «bárbaros do Sul» que chegavam ao território nipónico Nau do Trato ou «grande navio negro» (kurofune) – surgiu quando se dedicou a fundo, em forma de tese de mestrado, à imagem do Oriente na cartografia portuguesa do século XVI. Depois passou a viajar com frequência até ao Japão. A estreia a Oriente aconteceu em 2000, resultado de uma bolsa da Fundação Oriente: mês e meio a visitar e a investigar coleções de arte nanban em Tóquio, Osaka, Kobe e Nagasáqui. Regressou em 2001 e 2002, com a ideia do doutoramento, para concluir que «estes biombos com representação dos nanban-jin são arte japonesa e não arte europeia» – «há outra arte nanban que é híbrida», esclarece. Decidiu a meio do caminho estudar a língua nipónica, que agora quer continuar, e o vai e volta nunca mais abrandou, com projetos de investigação recentes sobre as «relações entre a missão cristã no Japão e as seitas budistas» ou correspondendo a convites do Ministério da Economia japonês e da Embaixada de Portugal.

No currículo da autora de Obras-Primas dos Biombos Nanban há ainda passagens pelo Museu Nacional de Arte Antiga – «trabalhei com Maria Helena Mendes Pinto, pioneira do estudo dos biombos nanban com representação de nanban-jin» –, pelo Instituto Português de Conservação e Restauro e, mais recentemente, pelo Museu Nacional do Azulejo. Em 2011, comissariou a exposição As Encomendas Nanban – Os Portugueses no Japão da Idade Moderna, no Museu do Oriente. «Temos de entender os biombos nanban como documentos válidos, mas com a sua própria codificação. Em parte, representam os portugueses no momento em que, no contexto japonês, o exótico fomos nós.»

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OS CRISTÃOS ESCONDIDOS DE AMAKUSA

Quando nos encontramos com Alexandra Curvelo no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, a historiadora regressara há 15 dias do Japão, onde esteve no âmbito de um projeto diferente do estudo dos biombos nanban. Tanto agora como em junho passado, contactou de perto com «comunidades de cristãos escondidos», cujos antepassados foram vítimas «de perseguições muito violentas», sobretudo depois da expulsão dos missionários (1614). Uma geografia religiosa original das ilhas de Hirado, Ikitsuki, Goto e Amakusa.

«O que encontramos é algo de completamente adulterado, são práticas religiosas cristãs únicas – imbuídas de crenças xintoístas, de práticas e rituais budistas –, redescobertas no século XIX, aquando da abertura do Japão ao Ocidente.» Curvelo fez parte de uma equipa multidisciplinar portuguesa que viajou até Amakusa, a sul de Nagasáqui, para ajudar na candidatura da «memória do passado cristão» da ilha a Património da Humanidade. «Saberemos o resultado no próximo ano. Local fundamental da missão cristã, em Amakusa esteve o primeiro bispo do Japão, D. Luís Cerqueira; trabalhou o jesuíta Luís de Almeida, tido como o introdutor da medicina à maneira ocidental no Japão; chegou em 1590 a célebre embaixada enviada à Europa com a primeira impressora; e foi introduzida a figueira. Ainda hoje é uma das maiores produtoras de figos no Japão», conta a historiadora. Não se estranhe, por isso, que a doçaria nanban reflita o predomínio deste fruto.